Foto: Manifestação contra a reforma das pensões, Paris, 19 de Janeiro de 2023
A crise da Vª República agrava-se de dia para dia. Não é possível compreender a sua dinâmica sem partir das forças sociais em presença e do seu enfrentamento.
A pedra angular da Vª República é o Presidente da República. A rejeição de Macron que o 9 de Junho mostrou foi de tal ordem, que se repercutiu no próprio regime. Ora, a Vª República é a moldura institucional do Estado. O que é o Estado? É o instrumento de opressão de uma classe social por outra classe social ⎼ e é indispensável ao bom funcionamento do sistema capitalista. Se não dispusessem do Estado, o punhado de multimilionários que controlam os meios de produção não poderia explorar a força de trabalho da grande maioria. Por intermédio das instituições, o que está agora em causa é o Estado; e, pelo Estado, o sistema de propriedade privada dos meios de produção.
As instituições da Vª República não têm a maleabilidade de um sistema parlamentar, em que alianças e combinações podem variar quanto for preciso para proteger o próprio regime. Na Vª República, o sistema eleitoral, assente num escrutínio a duas voltas em círculos uninominais, dificulta a formação de alianças pós-eleitorais. O seu princípio subjacente é de, antes da votação, se formarem coligações que tentam ganhar a maioria dos assentos e formar governo. Hoje, a poucos dias da primeira volta, a hipótese de que um único bloco venha a dispor de maioria absoluta na Assembleia Nacional não é a mais provável. Ao que se somam os problemas que a eventualidade de uma coabitação suscita. Daí que, cada vez mais, pelos meios de comunicação, ecoe o prognóstico de “ingovernabilidade” no pós-7 de Julho.
Os nossos adversários, que sabem que não é a primeira vez que falamos da agonia da Vª República, ironizarão porventura: “Eh pá, que agonia mais longa!” Pois é. A agonia prolonga-se devido à incapacidade das duas classes sociais em presença para chegarem a uma conclusão definitiva. A classe capitalista, porque, apesar dos golpes que tem desferido, não consegue desmantelar completamente os direitos e garantias conquistados pela luta operária de quase um século (nomeadamente nos grandes movimentos de classe de 1936, 1945, 1953, 1955, 1968…). A classe operária, porque, apesar de mobilizar milhões, se tem debatido com direcções que, chegada a hora de organizar o confronto, por exemplo, a convocação de uma greve geral, optam por se esquivar. Foi o que se viu, há pouco tempo, na mobilização contra a reforma das pensões.
Ao prolongar-se, a agonia do regime impulsiona a decomposição geral, institucional, política, social. Este regime está tão desacreditado, que, em se mantendo na forma actual, só pode agravar a rejeição e abrir caminho ao colapso total. A verdade, contudo, é que, nesta fase, nenhuma força social está em condições de impor uma solução alternativa. Tal só é possível a partir ou de uma força resolutamente virada para o golpe de Estado militar, o totalitarismo e/ou o alastramento da guerra (disso ameaçou Macron abertamente o país, evocando o espectro da “guerra civil”, no dia 24 de Junho); ou da classe operária, movendo-se para o desfecho revolucionário: tomar o poder em mãos.
Que poderá então suceder?
Para responder a esta pergunta, é preciso, repetimos, partir da situação das duas classes sociais fundamentais em presença: a burguesia e a classe operária.
Acima de tudo, como todas as burguesias, a burguesia francesa detesta e teme a destabilização. Para os negócios andarem, carece de estabilidade. A zona de turbulência em que o país entrou é fonte de incerteza. A pressão das agências de notação ⎼ portanto, do capital financeiro norte-americano ⎼ e da União Europeia e do FMI aponta no mesmo sentido: a burguesia tem de melhorar a produtividade. Tem de ser mais ofensiva na degradação dos direitos dos trabalhadores, que, aos seus olhos, são responsáveis por um “custo do trabalho” exorbitante.
Seja qual for o resultado das urnas no dia 7 de Julho, a classe capitalista precisa de garantias sólidas de que o futuro governo defenda os seus interesses. Na actual situação, tais garantias passam por duas questões fundamentais.
A primeira diz respeito à defesa das instituições. Os “três grandes blocos” comprometem-se a isso: evidentemente, no caso do bloco constituído pelos macronistas, pela direita e pelo centro; mas também a União Nacional (RN); e, igualmente, a Nova Frente Popular (NFP), que posterga para futuro indeterminado o objectivo ⎼ no mínimo vago ⎼ de “abolir a monarquia presidencial na prática das instituições” e de passar “a uma 6ª República através da convocação de uma assembleia constituinte”. No imediato, todos eles, em caso de vitória eleitoral, comprometem-se a coabitar com Macron. Em aplicação da Constituição da Vª República, terminadas as eleições, Macron nomeia o Primeiro-Ministro (artigo 8º), preside ao Conselho de Ministros (artigo 9º), promulga (ou não) as leis aprovadas pelo Parlamento (artigo 10º), assina (ou não) portarias e decretos (artigo 13º). Como “Chefe dos Exércitos” (artigo 15º), é seu o poder de obrigar (ou não) a França em conflitos. Conserva a prerrogativa de negociar e ratificar tratados internacionais (artigo 52º). Acima de tudo, tem o artigo 16º, que lhe confere o poder de declarar o estado de emergência, que suspende as liberdades e concentra todo o poder nas suas mãos. Pergunta-se: é possível romper com a política dos governos anteriores, mantendo Macron todos os poderes de censura e bloqueio que a Constituição lhe outorga?
A segunda questão é a do consenso sobre a política de guerra. A guerra imperialista em curso é um todo. Na Europa, ela requer o armamento e sobrearmamento da Ucrânia, alimentando o banho de sangue que tem ceifado milhares de vidas dos dois lados da frente. No Médio Oriente, baseia-se na negação dos direitos nacionais do povo palestiniano (marca essencial da ordem imperialista, desde a partição de 1947 até ao genocídio). A continuação da guerra é garantia de lucros chorudos. Há mais de dois anos que centenas de milhares de milhões de dólares vêm sendo investidos na guerra na Ucrânia pelo bloco (cada vez mais integrado) formado pela União Europeia, pela NATO e pelos Estados Unidos; ao que se somam os investimentos necessários para os preparativos de guerra contra a China e o armamento do governo genocida de Israel. Por todas estas razões, para o imperialismo mundial ⎼ dominado pelo imperialismo americano ⎼ é impensável a França libertar-se do papel subsidiário que lhe está atribuído na NATO, a mando de Washington. Em matéria de guerra, Bardella compromete-se a honrar os compromissos da França na Ucrânia e no Médio Oriente. O programa da NFP compromete-se também a continuar o “fornecimento de armas necessárias à Ucrânia” e a inscrever a sua política para o Médio Oriente no quadro das resoluções da ONU…
Pergunta-se: que crédito se há-de dar ao compromisso de “ruptura” reivindicado pelo programa da NFP, quando o mesmo programa se compromete a consagrar à guerra as centenas de milhar de milhões que cada vez mais fazem e farão falta às escolas e hospitais, aos cada vez mais desprovidos serviços públicos?
Todas as coligações em presença comprometem-se a respeitar as instituições e o compromisso de guerra. Não é que, para os círculos dirigentes do capital financeiro, a composição do futuro governo seja indiferente. Ante o risco de “ingovernabilidade”, a sua preferência ⎼ ou melhor, a sua menor repugnância ⎼ poderá recair num governo do “arco republicano”, uma maioria parlamentar que abranja dos republicanos à social-democracia, como recomenda Édouard Philippe. Ainda é preciso que haja forças suficientes na Assembleia para formar tal maioria. E ainda é preciso que elas o queiram. Isto, na condição ⎼ assim o exigirão os dirigentes capitalistas ⎼ de que o governo não desista de impor contra-reformas à classe operária. Ora, um governo assim ficaria marcado, logo ao formar-se, por uma fragilidade extrema. Poderia ficar rapidamente paralisado, ante a resistência dos trabalhadores. Para a burguesia seria, pois, na melhor das hipóteses, a solução “menos pior”. E por quanto tempo?
À falta dessa solução, uma parte dos círculos dirigentes do capital financeiro dá a entender que, pelo menos temporariamente, poderia passar bem com um governo de coabitação Macron-Bardella. Na condição, porém, de lhe poder impor a sua agenda. A RN, embora vá dando cada vez mais garantias, inclusive quanto ao respeito pela União Europeia, tem reticências. Receia o efeito de “desgaste” de um governo de coabitação, que possa prejudicar a possível eleição de Marine Le Pen nas presidenciais de 2027. Os círculos dirigentes do capital financeiro preferem ⎼ por enquanto ⎼ evitar um choque brutal com a classe operária. À falta de alternativa, porém, já há sectores dispostos a correr o risco de um governo da RN, o que antes não era o caso.
E a NFP? Embora use a palavra “ruptura” em grandes parangonas, o seu programa atém-se, como se viu, ao quadro institucional. Os dirigentes da NFP que se candidatam ao cargo de primeiro-ministro reivindicam assento num Conselho de Ministros presidido por Macron. Os círculos dirigentes do capital financeiro têm muitas reticências a uma combinação desta natureza; só se decidirão a aceitá-la se não houver realmente outra possibilidade. Os seus receios não são tanto por causa das intenções dos dirigentes da NFP, cujos partidos e dirigentes já demonstraram no passado a sua capacidade de governar sem romper nem com a Vª República nem com o capitalismo. O que a burguesia teme é a base social da NFP, os milhões de trabalhadores e jovens que, ao votarem na NFP, a carregam das suas reivindicações e aspirações.
Que querem os trabalhadores e os jovens? Eles têm reivindicações vitais em matéria de poder de compra, habitação, ensino, hospitais, condições de trabalho, segurança social e querem um governo que as satisfaça. A maioria tem, tendencialmente, confiança nos partidos da NFP. Porém, essas reivindicações e aspirações, para poderem passar à prática, exigem uma ruptura na prática, não apenas no papel. O que os capitalistas ⎼ com razão! ⎼ temem é essa exigência de ruptura com o capital financeiro, com as instituições da União Europeia e com a Vª República carregada aos ombros pela mobilização social de milhões.
Os próprios dirigentes da NFP oscilam entre duas atitudes: reivindicar o governo do país, multiplicando provas de “seriedade”, como têm feito Coquerel e Vallaud, ao apresentarem o seu programa ao Medef para convencer os patrões, apelando para o “patriotismo económico” e a “boa vontade” destes; ou começar de imediato a corrida para ver quem vai ser Primeiro-Ministro, dar o tiro de largada para a divisão entre dirigentes que, no fundo, reivindicam o mesmo programa. Pela divisão, acabar por deixar as rédeas do poder a Macron? Adiar tudo para 2027? Será esse o cálculo de Mélenchon, cujo objectivo principal é ser eleito nas presidenciais, daqui a três anos?
Ingovernabilidade… Le Monde fala de um golpe de Estado institucional, mediado por uma manobra para um terceiro mandato. A Europe 1 sugere a possibilidade de recurso ao artigo 16º. Macron acena com a ameaça de “guerra civil” ⎼ que poderia justificar a invocação do artigo 16º…
Os trabalhadores e jovens que votam na NFP não são nem cegos nem amnésicos. Sabem que houve, no passado, governos de Mitterrand, de Hollande, de Jospin, que, na altura, reuniram todos os partidos (ou os seus dirigentes) que hoje aparecem na NFP e então recusaram tomar o caminho da ruptura. Quando se lhes pergunta o que acham disso, é frequente trabalhadores e jovens responderem: “não nos esquecemos, não, mas não se pode resolver tudo ao mesmo tempo; por isso, primeiro, queremos impedir que a extrema-direita conquiste o poder, depois, trabalhamos para impor um governo que faça uma política de ruptura.”
Neste contexto veio o Partido dos Trabalhadores propor a palavra de ordem “Fora Bardella, fora Macron, ruptura operária”. Milhões de trabalhadores e jovens votarão na NFP por acreditarem ser a forma mais económica de impor uma política de ruptura: ruptura com a guerra, com a pobreza, com todas as contra-reformas.
Sem ter ilusões no programa da NFP, o Partido dos Trabalhadores faz parte deste movimento de milhões. Com total independência, expondo a nossa própria política e as nossas próprias palavras de ordem, daremos força ao movimento em que os trabalhadores dirão àqueles dirigentes que “tomem o poder nas mãos, se livrem de Macron, se livrem das instituições da Vª República! Formem um governo Mélenchon-Roussel-Faure sem Macron nem patrões, sem as instituições da Vª República! Formem esse governo, ponham de imediato em prática as primeiras medidas de emergência, sem medo de romper com a Vª República e com o capitalismo”.
Para o Partido dos Trabalhadores, para fazer isso é preciso, nomeadamente, confiscar as centenas de milhar de milhões da lei de programação militar, os lucros dos capitalistas e os dividendos pagos aos accionistas e reafectá-los às necessidades do povo trabalhador.
Tudo se resume, enfim, na capacidade de os trabalhadores se organizarem para fazerem vingar as suas necessidades. A saída só poderá surgir do confronto directo entre as classes. O Partido dos Trabalhadores, embora não o reivindique explicitamente no seu programa, só se pode construir como partido revolucionário fazendo sua não apenas a perspectiva da ruptura, mas também a luta para lhe abrir caminho ⎼ ajudando, portanto, a organizar a luta de classe, lutando pela unidade.
A solução virá da ruptura. Esta ruptura pode ser operária e revolucionária, enveredar pela via democrática da luta pela Asssembleia Constituinte e pelo governo dos trabalhadores. Mas também poderá vir de uma “ruptura” de tipo totalitário, na forma, inclusive, de golpe de Estado ou deriva para uma nova forma de fascismo.
Tal é a parada da nova etapa do confronto entre as classes sociais que está amadurecendo.