Os acontecimentos sucedem-se a um ritmo desenfreado. Primeiro, a vitória da União Nacional (RN) na primeira volta das eleições legislativas. Logo a seguir, o apelo de Macron à constituição de uma frente republicana. A resposta positiva imediata de Mélenchon, dando instruções para a retirada dos candidatos da Nova Frente Popular (NFP) em caso de 2ª volta “triangular” (a três). Nas horas que se seguiram, mais de cem desistências de candidatos da NFP, principalmente de LFI (La France insoumise). Para permitir, por exemplo, a reeleição do ministro Darmanin, pai da lei racista anti-imigrantes. Ou da ex-primeira-ministra Élisabeth Borne, mãe da reforma anti-operária contra as pensões dos trabalhadores.
O que significa tudo isto?
Fiéis ao nosso método, partiremos das posições das classes sociais em presença. No dia seguinte à primeira volta das eleições, a classe capitalista parecia sossegada. Os mercados financeiros mantêm a calma. O índice CAC 40 progride até. Les Echos salienta “o alívio dos mercados depois da primeira volta”. O que os capitalistas quererão evitar é “uma maioria absoluta da União Nacional, potencialmente muito despesista”. Se bem que “subsistam receios”, a ansiedade do capital financeiro ficará “comedida, graças ao quadro europeu, que passou a desempenhar um papel fundamental nas políticas económicas”. E Les Echos dá como exemplo o governo de extrema-direita de Meloni, em Itália.
Os capitalistas sabem que a RN é um partido capitalista que faz perfeitamente tenções de defender os interesses da sua classe social. No entanto, há uma fonte de preocupação: a RN dever o seu resultado a uma base eleitoral ampliada, que poderá ter exigências. Por conseguinte, é necessário colocar baias, de molde que, se a RN tiver maioria, esta seja relativa e não absoluta, obrigando o partido a procurar acordos e compromissos.
Na mesma perspectiva, a NFP está, desde Domingo à noite, a envidar grandes esforços para conseguir o maior número possível de desistências a favor de candidatos macronistas ou de direita, ainda que para isso tenha de apagar todos os vestígios de discurso de “esquerda”. No dizer de um dos seus dirigentes: a Frente Popular deve dar lugar à “Frente Republicana”. Glucksmann (PS) di-lo à sua maneira: “Aparelhos, identidades políticas, esquerda e direita… tudo se apaga ante esta situação vertiginosa”.
Assim, mais uma vez, a “esquerda” vem em socorro da Vª República e dos interesses capitalistas.
Já se terão esquecido de tudo?
De onde veio ao certo este rasgo eleitoral da extrema-direita?
Sigamos o fio da história para montante. Em 1981, Mitterrand foi eleito primeiro presidente “de esquerda” da Vª República. A extrema-direita está então no seu ponto mais baixo. Nem sequer apresenta candidato às eleições presidenciais. Nos anos que se seguem, Mitterrand fará tudo para reanimá-la, num cálculo político destinado a enfraquecer a direita. Sete anos mais tarde, Jean-Marie Le Pen candidata-se, conseguindo 14% dos votos.
Regressemos a 1981. Mitterrand é eleito com um programa e um compromisso de ruptura. O tema da sua campanha é a ruptura com o capitalismo. A campanha e a eleição aparecem em resposta ao recrudescimento da luta de classes e das mobilizações dos trabalhadores no final da década de setenta. Ora, a partir de 1982-83, faz-se a viragem para a austeridade, com o congelamento de salários, atentados aos contratos colectivos, leis Auroux para integrar os sindicatos no Estado. Durante os seus dois mandatos de sete anos, Mitterrand desenrolará uma série de contra-reformas reaccionárias: primeira cabimentação orçamental dos hospitais, para conter as despesas dentro dos limites da austeridade europeia, introdução da CSG (contribuição social generalizada), preparando a liquidação da segurança social, etc. Mitterrand será um dos principais arquitectos do Tratado de Maastricht de 1992, que deita uma chapa de chumbo em cima das economias europeias. Com o Tratado de Maastricht, dizia um alto responsável da banca alemã, “a única variável de ajustamento será a força de trabalho”. E foi, de facto, a força de trabalho!
Ao longo desses dois mandatos de Mitterrand, a classe operária pagou um preço elevado pelos ataques sem tréguas aos seus direitos. Além de se ter deparado com a recusa do tal governo “de esquerda” (ministros do PS e do PCF…) em proibir os despedimentos e garantir os postos de trabalho através de nacionalizações sem indemnizações nem resgates, quando se sofria o impacto da liquidação de segmentos inteiros de sectores industriais no têxtil, siderurgia, minas e automóvel.
Esta política dos governos de Mitterrand permitiu o regresso da direita ao poder. Logo que foi nomeado, Juppé lançou o seu violento ataque às pensões. Milhões de trabalhadores mobilizaram-se contra o seu projecto. O Presidente Chirac dissolveu a Assembleia Nacional em 1997, o que levou à realização de eleições antecipadas, nas quais a “esquerda plural” saiu vitoriosa. Durante cinco anos, os governos de Jospin (PS), Buffet (PCF), Voynet (Verdes) e Mélenchon (PS durante três anos) prosseguiram uma política de submissão à União Europeia e aos planos capitalistas, nomeadamente através da transposição das directivas europeias sobre a privatização da energia. A “esquerda plural”, que se tinha comprometido a melhorar a situação dos trabalhadores, fez-se correia de transmissão das exigências dos capitalistas. Chegou ao ponto de renunciar a não publicar os decretos da reforma Juppé, que ela foi a primeira a aplicar.
Mais tarde, conhecer-se-á fenómeno semelhante no governo Hollande. No total, durante os vinte e quatro anos em que a esquerda participou no governo, ela virou as costas a todas as suas promessas de ruptura, aparecendo aos olhos dos trabalhadores como responsável pela deterioração da sua situação e pela progressão generalizada da miséria.
Em tais condições, será de admirar que a base social da RN se tenha ampliado? Até às eleições de 2012, os seus resultados rondavam os 15%. Hoje, é um facto: há trabalhadores desempregados que não conseguem encontrar emprego, empregados ultrajados por verem traídas todas as promessas da esquerda, famílias populares que já não se conseguem safar financeiramente, camadas precarizadas e pauperizadas em regiões que se tornaram desertos industriais e médicos, onde a habitação social ficou ao abandono e os serviços públicos foram encerrados uns atrás dos outros… Sim, uma parte dessas camadas que ontem constituíam a base eleitoral do Partido Comunista e do Partido Socialista no Norte e no Leste do país e, de forma mais geral, nos bairros operários e populares, começou por se voltar em grande parte para a abstenção e, mais recentemente, uma parte dela, para o voto na União Nacional. Isso não faz destes eleitores fascistas ou racistas inveterados, mas faz de alguns deles trabalhadores, desempregados e jovens desesperados, exasperados e por vezes amargurados, que perderam toda a fé naqueles que prometeram mudar as suas vidas e que, na realidade, só as pioraram. Esta é a realidade. Não se pode entender de outra forma o avanço eleitoral da RN.
A RN nem por isso é menos perigosa; a sua retórica consiste em encorajar o racismo e a xenofobia, desviando a raiva destes trabalhadores dos responsáveis pela situação, os capitalistas, e virando-a contra o imigrante, o estrangeiro, designados bodes expiatórios.
Neste contexto, os dirigentes da “esquerda” parecem ter perdido a memória toda. Desde 2002, já por várias vezes praticaram a “frente republicana”, apelando, em 2002, a votar em Chirac face a Le Pen, e repetindo a operação em 2017 e 2022. Na altura, Mélenchon mostrou, aliás, muitas reticências nesta matéria.
Em 2022, o apelo da “esquerda” a votar em Macron para bloquear a RN contribuiu para a reeleição daquele. Resultado: dois anos depois, a RN está no auge.
Só há uma maneira de barrar o caminho à RN, que é chamar os trabalhadores e jovens para se unirem para impor uma verdadeira política de ruptura, uma ruptura com o capitalismo, uma ruptura com a Vª República.
Como é óbvio, não é a RN que está para fazer essa ruptura. Mas estará a NFP disposta a uma ruptura nesses termos? Duvidoso, não só tendo em conta o seu programa, mas também a sua táctica de fusão com Macron, Darmanin e Borne para a segunda volta.
Ruptura significa dar trabalho a quem não o tem; garantir salário digno a quem não consegue chegar ao fim do mês; restabelecer uma política de habitação decente, acessível a todos, mantida, reparada, renovada; ruptura significa garantir a escola e hospitais para todos. A política de ruptura é, consequentemente, a política de ir buscar o dinheiro aonde ele está: aos bolsos dos accionistas que se empanturram ano após ano, aos cofres dos capitalistas cujos lucros continuam a crescer e aos créditos de guerra, que devem ser confiscados e reafectados a uma política de vida, não de morte.
Os dirigentes dos partidos que historicamente saíram do movimento operário deveriam, logicamente, erguer a bandeira da emancipação dos trabalhadores, não a da convergência com os representantes da classe capitalista. Ruptura significa, na verdade, antes de mais nada, romper com Macron, não apoiar a sua reeleição.
Face à RN e a Macron, face à reacção, face à decomposição social, face à guerra, a perspectiva só pode ser a de um governo dos trabalhadores, de um governo de ruptura operária que, em todas as frentes, defenda os interesses dos explorados e oprimidos e se arme dos meios necessários para responder às suas aspirações.
É isto que se joga nesta situação. A classe operária terá de impor as suas soluções no seu próprio terreno, impô-las até apesar da política dos dirigentes e contra ela ⎼ dirigentes que parecem ter perdido a cabeça, ao virem em socorro de Macron, Borne e Darmanin. A sua tentativa de salvar a Vª República e o regime de exploração capitalista de que ela é instrumento é, na realidade, uma causa perdida. ◼︎
Daniel Gluckstein