O relatório Draghi e a nova Comissão Europeia: “Uma Mudança Radical”

European Commission President Ursula von der Leyen holds Former European Central Bank (ECB) chief Mario Draghi's report on EU competitiveness and recommendations, as they attend a press conference, in Brussels, Belgium September 9, 2024. REUTERS/Yves Herman

Há um ano, a União Europeia encomendou um relatório sobre o “futuro da competitividade da Europa” a Mario Draghi, homem com impecável currículo de serviço ao grande capital, ex-chefe do Banco Central Europeu, aureolado de salvador do euro, ex-primeiro ministro de Itália.

O relatório, agora apresentado, faz o diagnóstico das dificuldades e dos “desafios” que os países da UE enfrentam na nova situação no mundo; e propõe soluções. Sem elas, avisa Draghi, a “Europa” perderá definitivamente a “corrida”, e a UE perderá a sua razão de ser.

Um diagnóstico bastante claro

Draghi averigua que a competitividade económica da Europa se atrasa cada vez mais em relação aos EUA. A “estrutura industrial estática” europeia “produz um círculo vicioso de baixo investimento e baixa inovação”. Enquanto, na América, a investigação e desenvolvimento (I&D) é dominada pelos sectores das tecnologias de informação e computação, na Europa, as empresas que mais gastam em I&D são as do “maduro” sector automóvel.

Diz Draghi que a Europa se atrasa nas “novas tecnologias” porque os mercados de capitais são pouco integrados. As “start-ups” não encontram fontes de financiamento – encontram, sim, muita burocracia. Para singrar, têm que se mudar para os EUA. A “política industrial”, na Europa, é descoordenada (há muitos países…) e estorvada pela aplicação estrita das regras de concorrência da UE, que dificultam a concentração económica e a distribuição de subsídios públicos aonde convém.

O relatório toma nota, além disso (e sem o dizer assim, claro), de que os Estados Unidos iniciaram uma nova era de guerra global. Chegou ao fim a anterior fase da globalização, que, para o capital “ocidental”, se caracterizou pela facilidade em recorrer a força de trabalho barata em virtude dos acordos com a China e em obter matérias-primas e energia baratas – em África, na China, na Rússia, na Ucrânia.

O fechamento desses acessos, causado pela cada vez mais agressiva política americana contra a China (e a Rússia), acarreta consequências drásticas para a “Europa”. “As empresas da UE ainda suportam preços da electricidade duas a três superiores às dos EUA, e os preços que pagam pelo gás natural são 4 a 5 vezes mais altos”.

Embora não o diga tal e qual, o relatório di-lo com clareza suficiente: as sanções à Rússia que os EUA impuseram à “Europa” implicaram, mecanicamente, a expropriação de uma fatia significativa dos lucros das empresas industriais alemãs (principalmente) pelo grande capital americano. Os produtores americanos de gás natural e petróleo fazem fartos lucros, vendendo os seus combustíveis, muito mais caros do que os russos, aos países da UE. Já sem falar da indústria americana do armamento, que tem na guerra na Ucrânia uma cornucópia da abundância.

Os remédios de Draghi

Do diagnóstico deduz o relatório, linearmente, os remédios que propõe. Expõe-nos com bastante clareza, bastando lixar a fina demão de linguagem económico-burocrática.

Na mesma semana em que Draghi apresentou o seu relatório, a direcção da maior empresa automóvel da Europa, a Volkswagen (VW), denunciou o acordo que, desde 1994 e com validade até 2029, mantinha com os sindicatos e “conselhos de empresa” (órgãos da chamada “co-gestão”): o compromisso de não fazer despedimentos nem encerrar fábricas na Alemanha, em troca da “paz social”.

Coincidência?

Não é coincidência. Um dos principais accionistas VW é o Land federal da Baixa Saxónia, parte do Estado alemão, que é tradicionalmente dirigido pelo partido social-democrata, o partido tradicional da classe trabalhadora alemã.

A VW emprega centenas de milhar de trabalhadores na Europa e no mundo (ver artigo neste número). O anúncio de que passará a encerrar fábricas e a despedir trabalhadores na Alemanha é, na realidade, o toque de clarim de uma nova era por parte da grande burguesia alemã. O que ela está a denunciar definitivamente é o que resta do “pacto” de concertação de classes com as cúpulas sindicais e políticas do movimento operário alemão que esteve subjacente à reconstrução da Alemanha no pós-guerra e à sua potência industrial desde então.

Espremida pela tremenda pressão do capital americano, que destrói sem piedade os fundamentos dos baixos custos laborais e energéticos e os mercados de que a indústria alemã tem vivido, a burguesia da Alemanha – que não pode enfrentar os EUA pelo tradicional método imperialista da guerra – não tem remédio senão virar-se frontalmente contra a classe operária alemã (e do mundo) e tentar recuperar à custa dela os lucros perdidos.

Tal é o verdadeiro significado tanto das medidas anunciadas pela VW como do próprio relatório Draghi.

Se as cúpulas sindicais alemãs, que têm vivido na e da concertação de classes, reagiram com inusitada violência ao anúncio da administração, não é por acaso. A presidente do conselho de empresa da VW na Alemanha, D. Cavallo, declarou que se “está a atentar contra a própria VW e, consequentemente, contra o coração do grupo económico. Iremos opor uma resistência implacável (…) Comigo não haverá fábricas encerradas!” (agência dpa).

No início do mês de Setembro, uma tumultuosa assembleia de 25 mil operários apupou e pateou a administração e os seus planos, em Wolfsburgo, sede do grupo.

O relatório Draghi transpõe para a escala “europeia” a viragem a que se vê forçado o grande capital dos principais países da UE. Tão-pouco é acaso que a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, apresente o relatório, indicando que as recomendações de Draghi integrariam as “cartas de missão” em que traça as tarefas e objectivos dos novos comissários europeus para as respectivas pastas.

Investir na guerra

Assim, também não pode surpreender que as outras duas prioridades traçadas por Draghi, além da liquidação progressiva das indústrias “obsoletas” na Europa, sejam: primeiro, a redução dos custos da energia na Europa; segundo, a necessidade de investir maciçamente na “defesa”. Esta última percorre todo o relatório, é o seu fio condutor: preparar a “Europa” para a guerra.

Com efeito, o relatório toma nota de que os EUA rescindiram a sua velha política de assegurar o enquadramento militar da Europa e pagá-lo. Trump dissera-o à sua maneira brutal, quando intimou os europeus a “pagarem a NATO”.

Num mundo em que o acesso a mercados e fontes de matérias-primas tenderá, de novo, a depender menos de “acordos” e mais do uso de força militar (na China, África, Médio Oriente), Draghi conclui que é obrigatório entrar na economia de guerra decretada pelos EUA, investindo maciçamente no armamento e reapetrechando e concentrando a indústria militar europeia.

Instrumentos da “mudança radical”

Draghi é lapidar: a tarefa que se abre à sua Europa é impraticável sem uma “mudança radical” –  que é obrigatória, pois o desafio é “existencial”.

Entre os instrumentos da mudança, o relatório pede uma “política económica externa” europeia, que, em linguagem menos técnica, significa um mix de proteccionismo, chantagem económica e uso da ameaça militar e das armas. Reclama também uma política industrial que permita subsidiar o que Bruxelas entender, acabando, de passagem, com a doutrina da “concorrência sem entraves”. A tónica aqui é: o que Bruxelas entender. Os Estados membros da UE já praticamente não têm política económica ou industrial própria. Abdiquem, se faz favor, do pouco que resta a favor de Bruxelas.

Por fim, os meios financeiros. Draghi conclui que, para lá chegar, a taxa de investimento na Europa terá de passar de 22% para 27% do PIB. Um esforço sem precedentes, três a quatro vezes superior ao que o plano Marshall representou a seguir à IIª Guerra Mundial.

Mesmo “completando o mercado interno” e eliminando as barreiras (nacionais) que ainda estorvam a circulação totalmente livre de capitais e a liberdade total do investimento privado – outro “objectivo fundamental” – tal esforço só será possível com investimento “público” adicional: 800 milhares de milhões de euros, mais do que a totalidade do famoso PRR – só que todos os anos. Tal investimento teria, no mais, de ser feito centralmente, a partir de Bruxelas, para evitar “descoordenações”; e de ser financiado por dívida conjunta (a exemplo de parte do PRR, que rompeu o respectivo tabu).

Muitos comentadores do relatório concentraram-se em diminuir a sua importância, sublinhando o carácter irrealista deste seu pilar financeiro: as burguesias dos países ditos “frugais” nunca aceitarão voltar a emitir dívida conjunta com os “gastadores do Sul” e entregar a gestão a Bruxelas.

Talvez sim, talvez não. O relatório traça, porém, uma direcção e uma estratégia clara, que inspirará o estreito controle que Bruxelas (UE/NATO) exercerá sobre os orçamentos, políticas económicas, sociais e militares dos Estados membros.

Consequências drásticas para os trabalhadores

Se a Europa não conseguir ser mais produtiva, seremos forçadas a escolher. Não conseguiremos, ao mesmo tempo, tomar a dianteira nas novas tecnologias, ser um exemplo da responsabilidade climática e um actor independente na cena mundial. Não conseguiremos financiar o nosso modelo social. Teremos de cortar em algumas, se não em todas, as nossas ambições.” (do prefácio)

Alguém duvida de que a primeira “ambição” que, segundo avisa o relatório, cairá é o tal “modelo social”? Ou seja, as conquistas que os trabalhadores europeus impuseram às suas burguesias no pós-guerra (em Portugal, no pós-25 de Abril). Assim como, forçosamente, a concertação social com as burocracias do movimento operário, nos países mais industrializados da Europa, que tem garantido um módico de “paz social” em troca dessas regalias colectivas, hoje em, aliás, já reduzidas ao esqueleto?

Nenhuma dúvida tem lugar. Anunciando a “mudança de paradigma”, que consiste em largar as velhas indústrias, como o automóvel, e investir nas “novas”, Draghi avisa que a “mudança tecnológica pode acarretar transtornos significativos para os trabalhadores nas indústrias anteriormente dominantes que deixam de o ser, e aumentar as desigualdades: entre 1980 e 2016, calcula-se que a automação foi responsável por 50 a 70% do incremento na desigualdade salarial entre os trabalhadores com menores e maiores habilitações nos EUA” (p. 15).