Para que serve a Inteligência Artificial no sistema capitalista?

Nos últimos anos, a inteligência artificial (IA) tem vindo a ocupar um lugar cada vez mais importante na sociedade, em quase todos os sectores. Em si mesma, não é uma tecnologia, mas um domínio científico que reúne ferramentas que empregam mecanismos semelhantes ao raciocínio humano. As IA são programadas e treinadas por trabalhadores que concebem os algoritmos e os optimizam. Embora possam conduzir a avanços consideráveis em muitos domínios, como a saúde, estas ferramentas são, sobretudo, usadas por aqueles que têm o capital para as desenvolver: os capitalistas. Por tudo isto, vários jovens militantes do Partido dos Trabalhadores francês lançaram um debate sobre o uso da IA na sociedade capitalista. Estas contribuições não são artigos científicos, mas sim reflexões iniciais sobre o assunto. Pensamos que é necessário tratar estas questões, porque os trabalhadores e os jovens já se vêem confrontados com as consequências desastrosas do seu emprego em sistema capitalista.

Entre os vários domínios de aplicação da inteligência artificial, a vigilância urbana suscita tanto o interesse de quem pretende reforçar o controlo social como muita preocupação entre a população. Embora tenha passado relativamente despercebido, entrou em vigor em 1 de Agosto de 2024 um regulamento europeu sobre inteligência artificial (IA Act), aprovado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho. Este regulamento abrange muitos aspectos da regulamentação da IA, incluindo a vigilância de massas. O regulamento autoriza o uso de identificação biométrica à distância, ou seja, a utilização de câmaras de vigilância equipadas de reconhecimento facial capazes de identificar um indivíduo em poucos instantes. O texto especifica que esta tecnologia não “pode ser utilizada para fins de aplicação da lei de forma não selectiva, sem qualquer ligação a uma infracção penal, a um processo penal, a uma ameaça real e presente ou real e previsível de uma infracção penal“. Mas o que significa “uma ameaça real e presente de uma infracção penal ou uma ameaça real e previsível de uma infracção penal”?

Dependendo da interpretação desta fórmula vaga, uma manifestação, comício ou piquete de greve poderiam muito bem representar tal ameaça. A França foi um dos países que mais pressão fez para incluir estas excepções. Macron mandou experimentar, este ano, este tipo de equipamento, graças à lei JO 2024, que legaliza a videovigilância algorítmica a título experimental. Para coincidir com os Jogos Olímpicos, 485 câmaras controladas por inteligência artificial foram instaladas na capital pela prefeitura da polícia de Paris e pela RATP (transportes urbanos). No final de Agosto, foi a vez de a SNCF (caminhos de ferro) experimentar este equipamento. O software autorizado pela lei dos Jogos Olímpicos de 2024 trabalha com dados comportamentais como gestos, atitudes e passadas.

Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, emprega-se já inteligência artificial em vasta escala na vigilância da fronteira com o México e para facilitar a repressão. Mariana Trevino Wright, que vive junto à fronteira mexicana, garante que, para o Estado americano, o que está em causa é, de facto, reforçar a repressão na fronteira: “A guarda de fronteiras admitiu já ter instalado e usado esta tecnologia contra cidadãos americanos durante as manifestações que se seguiram à morte de George Floyd, em Minneapolis. E, na fronteira, acontece todos os dias” (RFI, 24 de Abril de 2024).

Alargar tal uso à rua e espaços públicos seria maneira extremamente eficaz de identificar o mínimo piquete de greve, comício ou manifestação. Permitindo, em combinação com a identificação biométrica, identificar os participantes nessas mobilizações numa questão de momentos, facilitando a repressão. Não admira que um governo como o de Macron, preocupado com as fortes mobilizações dos trabalhadores e da juventude durante o seu mandato, tente generalizar o seu uso.

Paul

Multiplicam-se os investimentos para reforçar a vigilância patronal através da inteligência artificial. O seu uso está mesmo a tornar-se muito comum em certos sectores, nomeadamente nos empregos precários. A Amazon, que já instalou câmaras “inteligentes” para vigiar os estafetas, quererá agora alargar essa vigilância, colocando sensores musculares em todos os seus empregados, para controlar os seus movimentos. Esta tecnologia já é usada por outras multinacionais, como a Ford, que está a testar a utilização de pulseiras com bipes para avisar os empregados se estiverem demasiado próximos uns dos outros. A pretexto de saúde e segurança, é uma dádiva para os patrões poderem evitarem a comunicação entre os operários, sabotando assim a organização colectiva…

Passa a ser fácil para o patronato seguir numerosos parâmetros usando este software: número de passos, número de pausas para ir à casa de banho, número de e-mails respondidos, etc. Valerio De Stephano, investigador canadiano no domínio da inteligência artificial, salienta que este software “produz alguns resultados discriminatórios, nomeadamente em matéria de recrutamento. Estas máquinas são geralmente calibradas para um trabalhador padrão – normalmente branco, de meia-idade e do sexo masculino. Uma pessoa que não se enquadre neste perfil corre o risco de ser mal avaliada pelos algoritmos”. Contratação com recurso a IA equivale, portanto, a sistematizar a discriminação na contratação. Nos call centers, sistemas de IA registam e analisam a forma como os trabalhadores atendem as chamadas, atribuindo-lhes notas. As caixas de correio electrónico são monitorizadas, nomeadamente para verificar se a palavra “sindicato” aparece nas mensagens electrónicas enviadas. A empresa Sapience Analytics, que comercializa este tipo de software, reivindica ganhos de produtividade, prometendo obrigar os trabalhadores a “explorar até 145% das suas capacidades”. A lógica é clara: usar a inteligência artificial para reforçar a sobre-exploração dos trabalhadores. Em Junho, a União Europeia adoptou regulamentação sobre a inteligência artificial. Certos algoritmos são classificados como “de alto risco”… mas, como é óbvio, não há qualquer proibição: nesta matéria, prima a lei do lucro e da concorrência livre e sem distorções!

No entanto, o desenvolvimento da IA de vigilância tem esbarrado na luta de classes. Na Deutsche Telekom, os trabalhadores conseguiram que fossem proibidos os algoritmos capazes de despedir trabalhadores e ficasse proibido o uso de dados recolhidos por vigilância digital para punir os trabalhadores. De recordar, igualmente, a longa greve dos guionistas de Hollywood, de 146 dias, que obrigou os estúdios não só a regulamentar o uso da inteligência artificial, mas também a aumentar os salários e a fixar termos contratuais mínimos.

Querendo impor estas novas tecnologias de sobre-exploração dos trabalhadores, os capitalistas defrontam uma resposta mais antiga… a luta de classes.

Guillaume e Paul

A inteligência artificial é muitas vezes apresentada como um grande avanço tecnológico, capaz de transformar a forma como produzimos. Porém, no contexto do capitalismo, esta transformação traduz-se, a maior parte das vezes, por maior exploração dos trabalhadores. A IA torna-se uma ferramenta ao serviço dos capitalistas, usada para reduzir os salários, maximizar a produtividade e extrair cada vez mais mais-valia aos trabalhadores.

Contrariamente ao que o seu nome indica, a IA não tem inteligência própria. O seu desempenho é unicamente fruto de um treino preparatório feito por trabalhadores humanos, que a ensinam a imitar tarefas específicas. Este processo assenta em boa parte em trabalho precarizado, muitas vezes de trabalhadores oriundos dos países em que se praticam mais baixos salários. Apesar de terem qualificações elevadas, estes trabalhadores executam tarefas repetitivas e pouco gratificantes. Estes postos de trabalho criados pelo surgimento da IA são mal pagos e não favorecem a progressão na carreira.

Além disso, a IA continua a depender de uma infra-estrutura material: computadores, servidores, electricidade, etc. Também estes necessitam de mão de obra humana, explorada em fábricas, minas e cadeias de abastecimento mundiais.

Uma vez suficientemente treinada, a IA pode ser empregada para executar tarefas habitualmente efectuadas por trabalhadores humanos. Esta evolução está na origem de despedimentos em massa em algumas empresas. Por exemplo, o grupo de imprensa Axel Springer reduziu os seus efectivos, suprimindo postos de trabalho de jornalistas, trocados por IA (ver o nº 381 de La Tribune des travailleurs, de 15 de Março de 2023). Os trabalhadores são assim progressivamente despojados dos seus empregos, relegados para funções de supervisão ou manutenção dos sistemas automatizados. Esta lógica de automatização aumenta a precariedade dos empregos que restam, muitos deles pouco qualificados e mal pagos.

Em sectores tradicionalmente caracterizados por escassez de mão de obra e por uma relação de forças mais favorável aos trabalhadores, as necessidades das empresas passam a ser menores, tornando mais difícil encontrar emprego. As oportunidades têm-se tornado mais raras, e a escolha mais limitada para quem procura trabalho. Este fenómeno é particularmente visível em áreas como o desenvolvimento de software e o sector dos videojogos, onde a assistência por IA aumenta consideravelmente a produtividade dos criadores.

As multinacionais estão a externalizar as tarefas de treino dos algoritmos de IA para países onde os salários são mais baixos. Em países como Madagascar ou as Filipinas, encontram-se licenciados em ciências sociais ou engenharia a desempenhar tarefas ingratas por alguns centavos por clique. Estes trabalhadores, embora indispensáveis ao funcionamento da IA, estão privados de direitos, de protecção social e de qualquer possibilidade de sindicalização.

A IA, tal como hoje posta a uso, amplifica uma lógica de lucro capitalista assente na exploração do trabalho humano. Os capitalistas continuam a pagar aos trabalhadores menos do que o valor do que estes produzem, servindo-se da IA para reduzir os quadros de pessoal e maximizar os lucros.

Apoiar o socialismo não significa ser contra a IA enquanto tecnologia. Numa sociedade controlada pelos próprios trabalhadores, a IA poderia ser um instrumento de emancipação, poderia aliviar a carga de trabalho humana, proporcionar mais tempo livre e melhores condições de vida para todos.

Contudo, no contexto do capitalismo, a IA passa a ser um instrumento mais de intensificação da exploração. Aumenta a concorrência e a divisão entre os trabalhadores do Norte e do Sul e degrada as condições de trabalho à escala mundial. Por isso, é essencial que os trabalhadores se organizem para resistir a esta automatização destrutiva e às novas formas de precariedade que ela gera.

Sasha Guillautin

A inteligência artificial desenvolveu-se muito fortemente nos exércitos das grandes potências mundiais. Usa-se IA generativa principalmente para aumentar a produtividade e a eficácia das missões que envolvem tanques, submarinos ou navios de guerra. Por exemplo, integram-se sistemas de IA em tanques para analisar os dados do reconhecimento em tempo real, permitindo melhores decisões no campo de batalha. Estes sistemas podem processar informações de uma variedade de sistemas de captação, como câmaras, radares e sistemas de detecção de infravermelhos, de modo a identificar ameaças potenciais e optimizar as estratégias de combate.

A IA também está presente no aperfeiçoamento dos drones, que funcionam principalmente como armas automáticas. Isto significa que, uma vez activados, os drones são capazes de actuar, apontar e lançar um ataque sem intervenção humana adicional e de tomar decisões instantâneas. Os drones modernos usam algoritmos de aprendizagem automática para analisar imagens e vídeo em tempo real. Utilizam-se, por exemplo, sistemas de visão por computador para distinguir entre veículos militares e civis. Estes algoritmos são treinados a partir de grandes conjuntos de dados, de molde a melhorar a sua precisão e capacidade de reconhecer alvos em ambientes complexos.

Drones desses foram, designadamente, usados pela NATO na guerra do Kosovo, em 1999, para detectar as posições estratégicas do exército sérvio. Nos últimos anos, o seu uso tem-se generalizado. Na Ucrânia, usam-se drones para lançar ataques mais estratégicos contra as refinarias russas, incorporando sistemas de IA para analisar dados do reconhecimento e optimizar as trajectórias de voo. Em Israel, no âmbito do genocídio em Gaza, os drones permitem identificar 37 mil alvos do Hamas e lançar o assalto para os eliminar eficazmente. Os drones israelitas usam algoritmos avançados para apontar a alvos e planear missões. Podem, por exemplo, incorporar sistemas de reconhecimento facial e de detecção de movimentos que permitem identificar indivíduos específicos no meio de multidões, servindo-se de bases de dados para verificar a sua identidade. Alega-se conseguir, assim, executar ataques precisos, minimizando “danos colaterais”.

Esta funcionalidade não se limita, aliás, aos drones. No início da década de 2010, as forças armadas da República da Coreia (Coreia do Sul) desenvolveram espingardas-sentinela capazes de reconhecer alvos humanos e disparar contra eles automaticamente. Elas são capazes de analisar o comportamento dos indivíduos e determinar se eles representam uma ameaça, levantando questões éticas sobre a automatização de decisões de vida ou morte.

Os exércitos que mais fundos e recursos investem na investigação em inteligência artificial têm sido os da Rússia, China e Estados Unidos. Estes últimos fizeram, aliás, 14 mil ataques com drones no Afeganistão, entre 2010 e 2020.

A rápida evolução destas armas autónomas coloca uma série de problemas. É complicado para as Nações Unidas e para o direito internacional adaptarem-se a estas mudanças e, por conseguinte, regularem o seu emprego como deve ser. De momento, as IA das armas não são capazes de distinguir entre combatentes e civis, o que põe em perigo toda a população do país visado. Os conflitos ficam também muito mais facilmente desequilibrados. As alianças entre potências mundiais são mais devastadoras. Uma potência capitalista que lançar um conflito contra um país explorado com poucos recursos não só tem vantagem na preparação do ataque, como pode passar a ser ainda mais poderosa do que antes numa guerra ou num genocídio.

Sam