Síria: “Aguardo angustiada notícias do destino de todos os desaparecidos”

Na foto: Na prisão de Saidnaya, tomada de assalto pelas famílias dos presos políticos, homens e mulheres procuram os seus familiares "desaparecidos"

Qual foi a tua primeira reacção à queda do regime?

Um sentimento muito dividido. Primeiro, uma enorme alegria, pois este regime reinou durante cinquenta e quatro anos e já era mais do que tempo que se fosse embora. Mas não pensava que se desmoronasse tão depressa. A seguir: inquietação pelo destino dos desaparecidos. Pelo menos cem mil pessoas, provavelmente mais, desapareceram nas prisões do regime, mas também nas das várias facções armadas. O mundo está agora a descobrir as imagens desta repressão. Mundo que, infelizmente, tem estado cego ao nosso sofrimento. Estou a pensar, por exemplo, na gente dita de “esquerda”, “anti-imperialista”, que achava o regime “progressista”, “anti-imperialista” ou “anti-sionista” e que agora está a descobrir as atrocidades que, estas décadas todas, ele cometeu contra toda a população, contra quem se lhe opusesse, fosse de esquerda, de direita, islamista ou laico. A esses todos quereria dizer, cara a cara: como puderam vocês ignorar-nos e ignorar os vossos próprios princípios?

Fala-nos então da repressão aos militantes do Partido de Acção Comunista, que conheceste bem…

O Partido de Acção Comunista nasceu da Organização de Acção Comunista, ela própria formada nos anos setenta a partir de células constituídas por militantes que tinham perdido a confiança no Partido Baath [o partido nacionalista no poder na Síria desde 1963], no nasserismo [Nasser, dirigente nacionalista laico do Egipto no pós-guerra] ou no Partido Comunista estalinista. Entre 1977 e 1980, dezenas de militantes da organização — homens e mulheres — foram presos pelo regime. Depois, em 1980, o regime tentou usá-los contra o ascenso da Irmandade Muçulmana, libertando-os e encorajando-os a exercerem livremente a sua actividade.

Só que, poucos meses mais tarde — fundara-se o partido, em 1981, em Beirute (Líbano) — , recomeçaram as detenções. A pior vaga ocorreu em 1987, quando foram detidos um milhar de militantes e simpatizantes, entre eles o meu primeiro marido. O punhado de militantes que sobrou, na clandestinidade, foi preso em fevereiro de 1992, mandando o regime de Hafez el-Assad transferi-los para a prisão de Saidnaya (que não era ainda o centro de tortura e execuções em massa em que se tornaria depois do massacre do motim de 1998). Em 2000, quando Bashar al-Assad chegou ao poder, houve um breve período de aparente liberdade. Foram libertados militantes, nomeadamente Abdelaziz al-Kheyer, militante experiente que lutara onze anos na clandestinidade. Em 2011, Abdelaziz al-Kheyer ajudou a formar o Comité Nacional pela Mudança Democrática, que compreendia catorze partidos e personalidades favoráveis a uma solução pacífica. Opunha-se a qualquer ingerência estrangeira e à militarização dos protestos contra o regime. Foi raptado no aeroporto de Damasco, em setembro de 2012, juntamente com dois dos seus camaradas, não havendo, desde então, notícias do que lhe aconteceu.

Nesse contexto, o que pensas do movimento de dezenas de milhares de sírios que querem regressar a casa e que estão a abrir as prisões e a libertar os presos?

Fico muito contente: já foram libertados dezenas de milhares de presos. Agora é preciso esclarecer o que aconteceu aos desaparecidos. Ontem, descobriram-se uns trinta cadáveres na morgue dum hospital militar, um deles era o de Mazen el-Hamada, que, na Holanda, onde estava refugiado, tinha denunciado a repressão. Regressou à Síria para tentar salvar a família, refém do regime. Em vão. Segundo os médicos, morrera há uma semana, sob a tortura. Eu, tal como dezenas de milhares de sírios, aguardo, angustiada, notícias do destino de todos os desaparecidos que conhecia pessoalmente. Milhares de pessoas estão à porta das prisões a aguardar notícias dos seus entes queridos.

São inúmeros os casos de prisioneiros que perderam a cabeça, como uma mulher, detida na prisão de Saidnaya com o filho — provavelmente fruto de violação — que não queria sair da cela e dizia aos que a vinham libertar que “não sei para onde ir!” É o papel da sociedade civil, que vai ser preciso reconstruir.

E agora, como vês o futuro do país?

Al-Jolani [o chefe das milícias vindas do Norte] é um islamista, apesar de estar a tentar mudar de retórica e de imagem. É um ditador: viu-se o que ele fez quando mandava na província de Idlib. Era filiado na Al-Qaeda, embora agora diga que se arrependeu de tudo isso e tenha um discurso aparentemente muito de união. Tudo isso se vai rapidamente tirar a limpo. Alegra-me que os meios de comunicação estrangeiros tenham podido entrar no país e que todos os refugiados tenham sido autorizados a regressar. Mas preocupa-me a integridade do país. Israel, que, nos últimos anos, nunca deixou de bombardear a Síria, tem feito bombardeamentos intensos. As duas últimas noites foram terríveis para a população de Damasco. Há também ingerência americana, no Nordeste, e ingerência turca; são muito preocupantes. É ao povo sírio e só a ele que compete decidir o seu destino. Os próximos meses serão decisivos para o futuro. Temos de nos opor a estas ingerências. Por outro lado, vamos precisar da solidariedade internacional para reconstruir este país e para que todos aqueles que, neste mosaico, se sentiram excluídos ou rejeitados possam ter o mesmo sentimento de cidadania.

Decida o povo sírio, sem ingerências!

Que trabalhador haveria de lamentar o regime de el-Assad, há mais de sessenta anos a oprimir o seu povo e a massacrar e torturar militantes sírios e palestinianos? Um regime que tem sido um pilar da ordem imperialista regional, desde ter integrado a coligação americana contra o Iraque, em 1991, até se ter encarregado da segurança da fronteira com Israel.
Centenas de milhares de sírios aspiram, muito legitimamente, a poderem exercer o direito a regressarem às suas cidades e aldeias. Tomam de assalto as prisões, libertam os presos, exigem que os desaparecidos reapareçam com vida e que se castiguem os carrascos.
Uma exigência se eleva de todas as parcelas da nação síria: do seu futuro decida o povo sírio e só ele!
Esta aspiração depara-se, todavia, ontem como hoje, com a ingerência estrangeira.
Com o apoio de Putin e do Irão, o regime sírio puxou a mobilização popular contra ele dirigida para o terreno dos enfrentamentos armados entre “comunidades”, propiciando a ingerência das grandes potências imperialistas e do regimes de Erdogan e das monarquias do Golfo, que armam e manipulam grupos armados.
Foi, aliás, da província de Idlib — controlada por Erdogan — que partiu a ofensiva deste conglomerado de milícias “islamistas” que fez cair, uma a uma, as cidades, até Damasco. Erdogan, que quer acabar com o controlo duma parte do território sírio pelas forças curdas, instrumentalizou uma vez mais os grupos jihadistas que financia e manipula. Para já, a mobilização popular impede estas milícias de impor o terror; mas as coisas podem mudar num ápice.
Em nome daquilo a que o secretário de Estado [ministro dos estrangeiros americano] Blinken chama “os nossos interesses na Síria”, o imperialismo americano conta bem aproveitar esta peripécia regional, que acaba de custar a Putin as suas únicas bases militares no Mediterrâneo, em Tartus e Hmeimim.
Israel, levando a cabo novas anexações territoriais e intensos bombardeamentos — que o chefe da “Frente de Salvação Nacional da Síria” teve o topete de aplaudir — vê reforçados os seus intentos de detonar uma guerra contra o Irão.
Quanto às grandes potências europeias que se arvoram em “democráticas”, elas aproveitam o ensejo para anunciar o fim do direito de asilo (e prováveis expulsões) para os refugiados sírios expulsos pela guerra. Biden, Trump, o Estado de Israel, Putin, Erdogan, a União Europeia: todos são inimigos do povo sírio… e de todos os povos.
Do seu destino decida o povo sírio e só ele!