O caso dos despedimentos no Bloco de Esquerda

Levantou alvoroço a vinda à público de processos de despedimento de funcionários do Bloco de Esquerda ocorridos há cerca de três anos — note-se, não denunciados pelos próprios, que se manifestaram apenas internamente.

Particularmente o despedimento de duas mulheres puérperas por alegada “extinção de posto de trabalho” — extinção que não terá impedido a sua substituição por funcionários com menos estorvos — foi usada na imprensa burguesa para realçar a hipocrisia do Bloco de Esquerda: denunciava os despedimentos dos patrões, mas fazia exactamente a mesma coisa.

Quanto à hipocrisia, com razão. Note-se, porém, por precisão, que a imprensa e a classe burguesa disseram: vocês são tal e qual como nós, uns hipócritas da pior espécie.

Terá a sua graça. Porém, as questões levantadas por este caso vão muito mais fundo.

1. O Bloco de Esquerda foi fundado por organizações, particularmente o PSR e a UDP/PC(R), que tinham nos seus programas originais o derrube do capitalismo e a revolução socialista dirigida pelo proletariado. Deixemos, para este efeito, de parte se, nomeadamente no período revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, a actuação política desses antecessores esteve em perfeita consonância com esses fins.

É, em todo o caso, curioso que tenha vindo a lume nestes mesmos dias que a direcção do Bloco, segundo o jornal Público, decidiu

alterar a definição e o objectivo do partido para “aperfeiçoar a escrita” devido às várias alterações acumuladas ao longo dos anos, como explica Luís Fazenda. O Bloco define-se agora como um partido que “actua pela superação do capitalismo” e que defende “o fim da exploração e das desigualdades sociais” como um “objectivo inseparável da luta contra todas as opressões”.

A revolução portuguesa, como todas as outras do século XX, tanto as revoluções vitoriosas como as revoluções goradas, deram a prova definitiva de que não há maneira de “superar” o capitalismo como quem, digamos, supera as barreiras dos 110 metros barreiras ou os obstáculos dos 3.000 metros obstáculos.

Quando, em 1974/75, a classe trabalhadora começou a erguer órgãos de poder alternativos aos do Estado (comissões de trabalhadores, de moradores e de soldados) e a tomar para si uma parte do poder, a classe capitalista não se considerou desportivamente superada: começou a organizar bandos fascistas, ataques a sedes de partidos e sindicatos operários, atentados e assassinatos terroristas e intentonas de golpe de Estado. Em suma, começou a preparar a guerra civil, caso os trabalhadores insistissem em tomar todo o poder.

A preferência das direcções do PS e do PCP por compromissos com o imperialismo e a ausência de uma direcção revolucionária forte do lado do movimento operário permitiram à burguesia permanecer “insuperada”, sem necessidade de guerra civil generalizada.

O “aperfeiçoamento da escrita” do Bloco significa, portanto, uma coisa muito simples e, no mais, visível a cada passo: a direcção do Bloco de Esquerda satisfaz-se do “regime democrático e constitucional” actual. Defende-o com unhas e dentes. Não lhe passa pela cabeça “superar” obstáculos nenhuns. O contacto com os obstáculos até lhe provoca choques eléctricos — tais, que a fazem fugir de palavras como “socialismo” ou “comunismo” como o diabo da cruz.

2. Mas o facto de maior importância para compreender as causas profundas do “escândalo” bloquista é este: mais de 90% do orçamento do Bloco de Esquerda vem do Estado. O Estado dá subsídios aos partidos segundo os votos que eles obtenham nas eleições.

A esse respeito, impõem-se duas ordens de perguntas e uma resposta muito simples:

a) Qualquer organização obedece a um princípio, perfeitamente natural: manda quem paga. Presta-se contas a quem paga. Quem paga, no BE? O Estado. Quem manda no BE? Não há prémio para quem acertar. A quem presta contas o BE? Ao Estado.

b) Um partido cujo aparelho, cujos funcionários dependem dos subsídios deste Estado para sobreviver irá lutar pelo derrube do Estado que o mantém e pela criação de um Estado dos trabalhadores? Não, não vai.

c) Na mesma ordem de ideias, uma organização dos trabalhadores só pode defender os interesses dos trabalhadores contra patronato e Estado se depender exclusivamente do apoio e do dinheiro dos trabalhadores, na forma de quotas militantes e campanhas financeiras. Só assim é obrigada a prestar contas a quem lhe paga, isto é, aos trabalhadores.

O BE, funcionando como uma repartição do Estado… funciona como uma repartição do Estado: aumentam-lhe o orçamento, recruta funcionários; baixam-lhe o orçamento, despede funcionários. Normal.

3. Assim sendo, surpreende alguém (conquanto possa suscitar a gargalhada) que, numa polémica subsidiária da polémica dos despedimentos celerados, a direcção do BE tenha decidido incluir nos estatutos do partido uma cláusula que obriga os seus militantes a defender o “bom nome” do partido?

O “bom nome” do partido é um conceito interessante. Por exemplo, o partido do senhor Ventura tem bom nome junto das suas hostes e apaniguados, mas muito mau nome entre os trabalhadores com consciência de classe. Um partido dos trabalhadores digno desse nome quererá ter bom nome junto da classe trabalhadora, mas muito mau nome junto da classe capitalista. Junto de quem quer o BE ter “bom nome”? (resposta, ver acima: junto do Estado).

À luz dos acontecimentos relativos às práticas da direcção do BE, uma coisa é certa: o BE ficou com certeza com muito mau nome junto dos trabalhadores — indiscutivelmente junto das funcionárias despedidas. Irá a direcção do BE autodenunciar-se por incumprimento dos seus próprios novos estatutos (ou invocará porventura a cláusula de não retroactividade?)?!

Ah, não. Um aparachik de topo veio logo a público, combativamente, dizer que a nova obrigação estatutária, afinal, teve de ser lá posta… por ordem do Estado (no caso, o Tribunal Constitucional)! E que, sim, será uma obrigação estatutária; mas… não, não haverá sanções por não a cumprir…