
“Vamos continuar a combater a burocracia nos organismos e serviços do Estado, a apostar na digitalização e na proximidade com o cidadão. Vamos continuar a promover uma imigração regulada, nem de portas fechadas nem de portas escancaradas, acolhendo e integrando com dignidade e humanismo os que escolherem Portugal para viver e trabalhar. Vamos continuar a investir em habitação pública — o maior investimento desde os anos noventa — e a incentivar a construção de casas a valores moderados, seja para comprar ou arrendar. Vamos continuar a salvaguardar a segurança como um dos maiores ativos do país, combatendo a criminalidade violenta, o tráfico de droga, mas também a corrupção e a criminalidade económica.”
(Luís Montenegro, no JN de 1 de Janeiro)
A mentira é uma forma normal de comunicação de qualquer governo burguês, a principal até.
Não é “por mal”: a comunicação dum governo ao serviço do capital dirige-se a um público vasto; mas a grande maioria deste público é constituída por trabalhadores explorados. Ora, os interesses elementares dos trabalhadores opõem-se aos interesses da classe dos capitalistas que os explora e a que o governo serve ou se submete. Qualquer contabilista sabe que, se nada mais mudar, mais salário implica menos lucro, e mais lucro implica menos salário.
Dizer a verdade, toda a verdade, poria, portanto, a nu os objectivos das medidas anunciadas, que são os objectivos que convêm à classe capitalista que o governo serve.
Por isso, os “especialistas” de comunicação burguesa têm por costume e técnica embrulhar o caroço de mentira numa casca refulgente de meias verdades, cravejada de lantejoulas retóricas.
Isso explica porque aos governos de Costa, tanto os da geringonça como os seguintes, também nunca falhou o cinismo, em doses generosas, por vezes escandalosas. O governo Costa resultara dos votos dos trabalhadores, mas estava comprometido a não tocar nos interesses dos Amorins, Mellos e Azevedos; muito menos, na UE e na NATO. O problema é que é muito difícil servir um lado e fazer constantemente de conta que se serve o outro. Só para dar um exemplo, quem esqueceu as mentiras e calúnias que o governo Costa destilou quando mobilizou a tropa para furar a greve dos motoristas?
Pacóvio e Manhoso
No entanto, o governo Montenegro traz algo de novo. Traz uma forma de “comunicação” muito mais depurada, em linha com a caracterização que o arguto chefe Marcelo fez do seu novo homem (“lento e rural”; queria dizer: pacóvio e manhoso). O método Montenegro consiste numa fórmula cujo segredo é ser proferida com a mais consumada cara de pau: mentir.
São precisas medidas para rachar e privatizar definitivamente o serviço nacional de saúde, como exige o capital financeiro, os Mellos da CUF e outros?
Muito bem. Mas chame-se suavemente a essas medidas “medidas para salvar o nosso serviço nacional de saúde”…
São precisas medidas para intimidar os trabalhadores imigrantes, explorando o racismo e alimentando a “percepção de insegurança” da população, para ganhar espaço para a repressão que vai ser necessária para dividir e conter a reacção do trabalho?
Muito bem: mas chame-se a tais medidas: “medidas para combater a percepção de insegurança”.
São precisas medidas para alimentar os lucros dos especuladores imobiliários (em economês: “investidores”) e reservar definitivamente as cidades para gente rica e estrangeiros endinheirados?
Muito bem. Mas chame-se a essas medidas: “medidas para resolver o problema da habitação”.
Mentir sem Pestanejar
Não há aqui nem uma sucessão de acidentes, incidentes avulsos, casos ou casinhas, com ou sem Espinhos. Há um método.
Como assinalámos no anterior número d’O Trabalho, este governo começou com uma fenomenal aldrabice fiscal. Anunciou um alívio fiscal às “classes médias” de 1.500 milhões de euros — afinal, eram 200 milhões, ou, salvo par quem ganhasse muitos milhares, duas bicas por mês… Pouco depois, afoito, proclamou que doava 126 milhões de euros à Ucrânia para matar jovens ucranianos e russos às ordens da NATO. Mas afinal eram só 26 milhões… Foi só o início.
A Mentira-Chapéu: “Salvar o Estado Social”
Na sua comunicação de fim de ano, o primeiro ministro anunciou que ia “salvar o Estado social”. Para efeito dramático, nomeou os seus “três” ingredientes: investimento, investimento e investimento. Especificando: investimento público, investimento privado, investimento externo.
De investimento público, estamos conversados. Não houve nem haverá, salvo o PRR para subsidiar o patronato, mais umas medidas para substituir funcionários públicos por sistemas digitais. O investimento público de Montenegro na saúde, por exemplo, consiste em substituir o pessoal qualificado que encaminha os doentes que procuram as urgências por telefonemas geridos por algoritmos. A última novidade é a substituição das urgências obstétricas e maternidades, fechadas, por telefonemas e algoritmos para as grávidas que procuram assistência urgente.
Sobram, portanto, os outros dois ingredientes — que são só um: o investimento privado, interno ou externo, que pulula ávido pelo país. Investimento privado interno significa: grupo CUF/Mello. Investimento privado externo significa: grupo Luz (dum capitalista chinês), grupo Lusíadas (dum capitalista francês).
Como se “estimula” o investimento privado? A resposta não é difícil: basta saber se e quanto rende (em “economês” moderno: qual é o retorno?).
Mas salvará o investimento privado aquilo a que Montenegro dá o comovente nome de “Estado social“? Não. O investimento privado ganha dinheiro à custa do “Estado social”, do orçamento da saúde, habitação, transportes. Quando este estiver “esgotado” (palavra usada por Montenegro), será então silenciosamente enterrado.
A imprensa noticiava recentemente este exemplo: os três maiores (e estimuladíssimos) grupos privados de saúde, Luz (Fidelidade, chinês), Lusíadas (grupo Vivalto Santé, fundo de investimento francês) e Montepio Dona Leonor planeiam construir hospitais na zona das Caldas da Rainha — onde está (estava?) planeado construir o hospital público do Oeste. Relata o Público (7/1/25) que “o aparecimento de três hospitais na cidade retira um dos argumentos à luta pela localização do futuro Hospital do Oeste nas Caldas: o hospital público viria suprir a falta de respostas privadas na área da saúde. Vítor Marques, presidente da Câmara das Caldas da Rainha, reconhece que esse argumento deixa de fazer sentido. “Hoje em dia, há muitos seguros de saúde que aparecem no mercado para dar resposta à não resposta do SNS. Por outro lado, estes investimentos dos privados nas Caldas acabam por vir a ter o Estado como o seu grande cliente, sobretudo por via da ADSE.”.”
O Caso da Saúde: o Golpe da Misericórdia
O SNS tem sido progressivamente demolido pelos sucessivos governos, incluindo os da geringonça. Parcelas crescentes do orçamento do serviço nacional de saúde servem para pagar, a externos privados, prestações que o SNS já não consegue realizar, “esgotado” pelos constrangimentos crescentes de pessoal e meios a que tem sido condenado pelos governos, mandados pela UE.
Assim, o privado, florescente, recruta médicos e enfermeiros ao SNS, a quem promete melhor salário (geralmente disfarçado de contrato de prestação de serviços). Segue-se que as as carências de pessoal do SNS se agravam. Segue-se que o SNS fica “obrigado” a encomendar ainda mais prestações ao privado. Segue-se que este, florescente, recruta ainda mais médicos e enfermeiros ao SNS, que, assim, fica obrigado…
Mesmo as actividades que, por não prometerem “retorno”, são mais difíceis de privatizar, como as urgências, ficam cada vez mais penosas e ineficazes. Funcionam como um poderoso incentivo para que os trabalhadores, mesmo os que ganham salários relativamente baixos, contraiam seguros de saúde privados, única forma de se irem safando enquanto o caso não for de vida ou de morte.
A frase-chave de Montenegro ao apresentar o seu plano de emergência para a saúde foi de que, como o SNS não conseguia fixar médicos, tinha de se ir para outras soluções, por exemplo as USLs geridas por privados, parcerias público-privadas e por aí fora.
Frase chave porquê? Porque Montenegro nem se dá ao trabalho de pensar em “medidas para fixar os médicos ao SNS”. Regista, simplesmente, o “facto”. Dá-o de barato. As “soluções” têm de se basear nesse “facto”. As medidas do plano de Montenegro para a saúde obedecem a uma fórmula simples: estimular o investimento privado, pondo a saúde a render. Eis como:
a) Manter más e agravar as condições de trabalho e remuneração no SNS, empurrando cada vez mais profissionais de saúde para o privado;
b) Manter e agravar o caos nas urgências, incentivando a população a fazer seguros privados, até já só restarem os trabalhadores mais pobres; estes — que “aguentem”.
c) Privatizar; o último anúncio, datado de 13 de Janeiro, foi de que o governo ia retomar o processo de “devolução” às Misericórdias dos hospitais nacionalizados depois do 25 de Abril (Público). Para já, três hospitais: Anadia, Fafe e Serpa. O governo só põe uma condição: que os custos de funcionamento baixem 25%! Os “custos”, na saúde, são, no essencial, custos com médicos, enfermeiros, técnicos, equipamento médico. Não é preciso adivinhar o que irá acontecer nos hospitais “devolvidos”. O golpe da Misericórdia de Montenegro…
O bastonário da Ordem dos Médicos referia há dias, na TSF, que o SNS está à beira da “absoluta ruptura”. Na verdade, o “plano de emergência” para a saúde é um plano para matar o SNS. Na terminologia mentirosa de Montenegro, matar diz-se: “salvar”. Salvar, crucificando!
O Caso da Habitação
Montenegro apresentou assim a sua solução para o problema da habitação: “incentivar a construção de casas a valores moderados, seja para comprar ou arrendar”.
Entretanto,
— decretou a libertação do alojamento local das restrições, mínimas, a que o governo anterior o tinha sujeitado;
— mantém os privilégios dos “residentes não habituais” e ofereceu bonificações de juros aos jovens com condições para comprar casa — a preços inacessíveis a 90% da população;
— alterou, no passo mais recente e espectacular, a lei dos solos, abrindo a possibilidade de fazer construção urbana em terrenos rurais.
A desfaçatez montenegrina não conhece limites: diz que a alteração da lei dos solos limita a valores máximos de 25% acima da mediana dos preços actuais 70% dos terrenos entregues à especulação urbanística. Ora, os preços actuais, que já são o resultado de anos e anos de especulação, estão completamente fora do alcance das famílias e dos jovens. Mais 25% disso é o que Montenegro entende por “preços moderados”!
No ainda curto consulado de Montenegro, o aumento de preços e rendas bate todos os recordes. Em 2024, noticiava o Expresso (9/1), “os fundos de investimento imobiliário estão a bater vários recordes. Entre novembro de 2023 e novembro de 2024 a taxa de retorno média dos fundos nacionais foi de 35,1%, um registo histórico em Portugal, motivado principalmente pelo aumento da procura, descongelamento do limite das rendas e conclusão de vários negócios que deram gás a alguns veículos de investimento.” A primeira consequência da alteração da lei dos solos será a explosão do preço dos prédios antes rurais. Construtores, intermediários e “investidores” vão fazer negócios ainda mais chorudos.
Entretanto, trabalhadores e jovens procurarão em vão tecto para as suas famílias. A presidente da câmara de Almada dizia há dias na TSF que a crise da habitação se está a tornar “incontrolável”.
O Caso da Imigração
Montenegro promete regular a imigração. Diz, sonso: “nem portas escancaradas nem portas fechadas” e “acolher com dignidade e humanismo aqueles que escolherem viver e trabalhar no nosso país”.
Entretanto, encostou a rua do Benformoso à parede (ver mais abaixo); e tirou aos imigrantes não regularizados — que trabalham e descontam — o acesso ao serviço nacional de saúde e às prestações sociais.
O efeito é tudo menos inocente. Uma fatia da população trabalhadora, os trabalhadores imigrantes não regularizados, cuja situação se deve exclusivamente à inoperância dos serviços de imigração, privados de pessoal e meios, ficam condenados a uma existência sem assistência médico-social. Os trabalhadores imigrantes em geral, que já estão entre os mais explorados, ficam ainda mais indefesos, sujeitos ao alvedrio patronal, que tem novas alavancas para intensificar a chantagem e a sobre-exploração.
O Caso da Segurança
No dia 19 de Dezembro, Montenegro organizou uma rusga policial em grande estilo à rua do Benformoso, em Lisboa, onde há uma grande concentração de trabalhadores imigrantes e de comércios detidos por imigrantes, sobretudo do sub-continente indiano.
Em Outubro passado, o trabalhador cabo-verdiano Odaír Moniz fora assassinado pela polícia.
Nas primeiras declarações que prestou depois da rusga à rua do Benformoso, o primeiro ministro disse, com indisfarçado orgulho, que ela era fruto das orientações do governo. Visava “combater a percepção de insegurança” (num dos “países mais seguros do mundo”!). Ante a forte reacção, a tropa de choque do governo, fiel à linha da mentira sem pestanejo do chefe Montenegro, apressou-se a insistir que, apesar das claríssimas declarações do primeiro ministro, a operação afinal estava planeada há muito pelas autoridades policiais e nada tinha que ver com orientações do governo: rusgas assim sempre houve, aos montes, e até agora ninguém objectou…
Acontece que “percepções” são, por definição, coisas que residem nas cabeças, não na realidade. A única maneira de combater percepções é visar as cabeças onde elas residem. Chama-se a isso: propaganda.
A rusga teve dois fins muito simples, e ambos são do foro da propaganda:
— meter medo aos imigrantes;
— meter medo à população em geral, metendo-lhe medo dos imigrantes.
Entretanto veio a lume (Público, 9/1/25) que a polícia agiu ao abrigo de um mandado da procuradoria. O mandado indicava como finalidade a busca de armas.
A polícia encontrou, ao todo, uma faca.
O verdadeiro resumo da finalidade da operação deu-o, no dia 9 de Janeiro, ao seu estilo, Ventura, aos berros, na Assembleia da República: “encostem-nos à parede”!
Ventura exige que os encostem e intimidem. Montenegro encosta-“os”. Os bando facho-venturistas (1043, “habeas corpus” e outros) apelaram a uma contra-manifestação contra a manifestação de protesto convocada para dia 11 de Janeiro. Os bandos fascistas queriam ensaiar de novo tirar a rua ao movimento operário e popular, que a domina há 50 anos.
O resultado decepcionou-os decerto. A grande manifestação de 11 de Janeiro reuniu mais de cinquenta mil jovens e trabalhadores, portugueses e imigrantes, numa impressionante demonstração de força e solidariedade.
Enquanto isso, duas dezenas de nazis agachavam-se no vasto relvado da Alameda D. Afonso Henriques, atrás de bandeiras nacionais, sob a protecção de um imenso dispositivo policial. O comício de Ventura na Praça da Figueira, com os seus deputados e assessores, nem a rua da Betesga conseguiu encher. A extrema-direita perdeu mais uma batalha pela rua.
Mentira universal
A torrente de mentiras despudoradas espoja-se por todos os sectores e âmbitos.
Com absoluta cara de pau e o seu melhor sorriso de feirante, o primeiro ministro disse de cada área rigorosamente o contrário do que deliberadamente anda a fazer — sob o mote das “reformas estruturais” e de “salvar o Estado social”:
— “estamos (…) a melhorar as remunerações e carreiras de setores-chave da administração pública, como professores, forças de segurança e forças armadas, funcionários da justiça e do sistema prisional, enfermeiros e outros profissionais da área da saúde”. A realidade: aumentos bem abaixo da inflação, alguns milhares de professores fintados na restauração do tempo de serviço;
— “começámos por baixar os impostos sobre os rendimentos dos trabalhadores”. A realidade: o trabalhador médio “ganhou” do governo meio café por semana;
— “actualizámos sem truques todas as pensões”: o governo deu “suplementos extraordinários” que são esmolas sem exemplo, que deixam as pensões a continuar a perder de compra.