
Quem se guie pela generalidade dos meios de comunicação ocidentais, pensará que, ao suspender a ajuda militar americana, Trump desistiu de defender a liberdade da Ucrânia — e que restam os “europeus” para o fazer.
Quem acredite na história da carochinha do “Ocidente defensor da liberdade e dos valores democráticos”, talvez se surpreenda com as últimas vicissitudes. Ora, não há nada de surpreendente. Trump é um capitalista, representante oficial dos capitalistas do seu país, que concluíram que é preferível eliminar o incómodo de uma guerra sem fim à vista, que custa muito dinheiro ao orçamento do Estado — dinheiro que, diga-se de passagem, vai inteirinho para os bolsos dos accionistas da indústria americana do armamento — e que, sobretudo, desvia o foco da China, que, como disse o novo ministro da defesa americano, Hegseth, é “a nossa única prioridade”.
A “única prioridade”
Para o grande capital americano, a guerra já serviu a função de enfraquecer significativamente a economia e o exército russo e relançar a produção americana de armamento. Agora é altura de passar a outra coisa (leia-se: a China).
Trump diz aos ucranianos, no fundo: “Nós investimos quase 130 [Trump, com a sua aversão maníaca a factos, disse 500] mil milhões de dólares em armar-vos. Agora é altura de recolher o fruto do investimento: vocês assinam o acordo que a gente gizou com Putin e desistem dos territórios perdidos” — mas, principalmente, “reconhecem o direito dos capitalistas americanos a rapinar sem limites os vossos recursos naturais” (Putin, por sua vez, prontificou-se amavelmente a deixar os americanos saquear os recursos minerais nas partes ocupadas pelo exército russo).
Recusa Zelensky capitular sem condições? Suspendendo a ajuda militar, Trump recorda ao oligarca-chefe da Ucrânia que esta guerra é uma guerra entre a NATO/EUA e a Rússia, em que à Ucrânia cabe o mero privilégio de ofertar a sua juventude em holocausto.
A quem proteste, invocando o respeito por anteriores acordos, Trump responde que a única lei que conhece e respeita é a lei do lucro, que diz que um capital deve render mais do que o investimento que custou. A política de Trump não difere por aí além da do seu antecessor; mas, ao perguntar, praticamente com todas as letras, “quem disse que esta guerra era pela liberdade?”, Trump embrulha a sua mensagem numa linguagem menos hipócrita.
Chovem milhares de milhões para armas
Vinte e quatro horas passadas sobre o anúncio de Trump, a União Europeia, pela voz de Ursula von der Leyen, lança um plano de investimentos de 800 mil milhões na indústria de armamento, sob o arrepiante título de “rearmar a Europa” (para dar uma ordem de grandeza, são quase 15 milhões de anos de avença da Solverde à Spinumviva de Montenegro). Até agora, em nome da “redução do défice e da dívida pública”, os povos dos países da União Europeia têm sido obrigados a suportar cortes cada vez mais monstruosos na saúde, no ensino, na habitação, nas pensões, na segurança do emprego.
Mas, de repente, quando se trata de “rearmar”, já não há défice nem dívida que valham, é fartar, vilanagem!
O novo futuro chanceler alemão, Merz, fez toda a sua campanha eleitoral a prometer não desmontar o “travão constitucional do défice público” (mecanismo ainda mais restritivo do que a regra europeia do défice máximo de 3% do PIB). Agora, porém, anuncia que afinal é preciso desmontá-lo — a fim de criar um fundo de 500 mil milhões de euros para a “defesa”!
Para compor o arrepiante ramalhete, a revista liberal Der Spiegel defende em editorial que a Alemanha se tem de dotar de um “guarda-chuva” nuclear (1 de Março).
Chuva na eira, sol no nabal?
O curioso, no meio disto tudo, é que precisamente “quem se guie pela generalidade dos meios de comunicação ocidentais”, a única coisa que leu e ouviu, desde o início da guerra, foi que: as sanções dobrariam rapidamente a Rússia; a sua economia estava em colapso; as suas baixas eram astronómicas e insustentáveis: centenas de milhares de soldados mortos, quase todos os tanques destruídos; o seu equipamento, tecnicamente anacrónico, só podia continuar a ser produzido extraindo chips “ocidentais” de máquinas de lavar roupa.
Há uma aparente contradição (salvo para os comentadores) entre este “cenário de desgraça” e o “cenário de ameaça” que propagam ao mesmo tempo: que, se a Rússia não for derrotada, vem aí, Europa fora, conquistar tudo o que mexe…
Independentemente das fantasias da propaganda, há coisas que se podem dizer sobre a Rússia: os oligarcas russos não têm qualquer possibilidade de competir com o grande capital ocidental pelo mundo fora (e sabem-no). Pretendem, no essencial, poder continuar a saquear o seu país sem demasiada interferência. Não por acaso, a maior parte dos haveres dos oligarcas guardavam-nos os oligarcas… no Ocidente (que agora os congelou e usa para financiar Zelensky)! E, sim, a guerra enfraqueceu, forçosamente, a Rússia e provocou uma sangria na sua juventude.
Convém não esquecer: o orçamento russo para a guerra é cerca de 10% do americano, e equivale aproximadamente aos da Grã-Bretanha, França e Alemanha — individualmente, não em conjunto!
É esta a ameaça que justifica o “rearmamento” da Europa!
Quem vai pagar?
A nova dívida e os novos défices vão ter de ser pagos por alguém. Quem?
Os tribunais de contas francês e português (pelo menos este, aconselhado por um homem dos “mercados de capitais”) concluíram, há poucas semanas, quase em curioso simultâneo, por haver um défice alarmante da segurança social, que obriga a medidas drásticas. No seu recente discurso ao Congresso dos EUA, Trump fulminou os “abusos” nos pagamentos da segurança social (acusou esta, à sua maneira delirante, de estar a pagar a mais de 130 mil pessoas com mais de 160 anos de idade…).
Por outro lado, os bancos europeus que compram a dívida do Estado alemão já começaram a exigir-lhe juros mais altos: logo que o novo plano dos 500 mil milhões foi tornado público, o juro efectivo das obrigações do Tesouro alemãs subiu de imediato 0,2 pontos, ou quase 10%: os trabalhadores que paguem; os capitalistas cá estão para receber!
A factura da febre armamentista e da guerra entre capitalistas será apresentada aos trabalhadores de todos os países. O que se prepara é o desmantelamento do que resta do “Estado social” — nem que seja à custa de destruir as famosas “liberdades”.
Tropas europeias para a Ucrânia
O capital europeu e os governos que o representam regem-se, como os americanos, pela lei única de Trump, a do lucro; e querem o seu quinhão na rapina. Afinal também eles “investiram”, e até mais que os americanos! É claro, melindrar o grande irmão não dá. Macron e o seu homólogo britânico oferecem-se para mandar tropas para a Ucrânia para garantir a manutenção da ordem enquanto os recursos naturais do país são pilhados pelas multinacionais estrangeiras (Montenegro já disse: lá estaremos!) Com uma reserva, porém: o exército americano tem de se comprometer a apoiar os heróis europeus se a coisa der para o torto!
Se, nas bolsas de valores, os 800 mil milhões de euros prometidos por Ursula von der Leyen já estão a fazer as delícias dos mercadores de canhões, no terreno, a guerra continua. Morre-se todos os dias dos dois lados da linha da frente, jovens ucranianos e jovens russos sacrificados aos interesses e à ganância dos oligarcas do petróleo, do gás e do armamento, da Europa e da América, da Rússia e da Ucrânia…
Guerra pela liberdade? Todos estes oligarcas, que são quem decide pelo povo ucraniano, gravaram a “liberdade” nos seus estandartes. Nas cabeças deles, porém, a palavra de ordem que conta é outra: o “lucro”! Estão agora a aprender, no entanto, que, se são eles que decidem pelo povo ucraniano, quem decide por eles são os EUA e a NATO/UE. Nenhum governo capitalista intervém por amor à liberdade. A luta pela liberdade e pela soberania dos povos do mundo só será ganha como parte do combate contra a guerra e a exploração, o combate pela Internacional dos Trabalhadores.