
Não é possível lutar pela construção de uma sociedade assente na satisfação das necessidades da humanidade (e não no lucro de um punhado de capitalistas), o socialismo, portanto, sem defender a única força social capaz de o impor: a classe operária. Sem defender, por conseguinte, as organizações e as conquistas que são a fundação da classe operária. Como dizia Trotsky em 1939: “Quem não é capaz de defender as velhas conquistas nunca conseguirá conquistar novas”. É neste contexto que devemos tratar a questão da China. Porque está ela hoje no centro dos preparativos da guerra do imperialismo americano?
O paradoxo da revolução chinesa de 1949
O que é a China actual? É um regime político e social nascido de uma revolução proletária, a revolução que triunfou a 1 de Outubro de 1949, quando as tropas do Kuomintang (o partido nacionalista burguês chinês) foram obrigadas a abandonar a China continental e a refugiar-se em Taiwan.
Mas esta revolução teve um carácter particular: desde o início, o poder político foi confiscado pela chefia burocrática do Partido Comunista Chinês (ao contrário da Rússia, onde uma verdadeira revolução operária tinha triunfado, em Outubro de 1917, vindo a degenerar burocraticamente alguns anos mais tarde). Desde o início, a classe trabalhadora foi excluída da sua direcção política.
No entanto, foi, sim, uma revolução social. Em 1949, a China era um país feudal, entregue a senhores da guerra e à rapina das grandes potências imperialistas. A revolução social de 1949 permitiu à nação chinesa impor-se como nação soberana, pôr fim ao domínio dos senhores da guerra e das potências imperialistas. Começou, em 1949, um processo que levou à abolição da propriedade privada dos meios de produção na China. O Estado, nascido deste processo para defender as novas relações de propriedade, é indiscutivelmente um Estado operário, burocraticamente deformado, onde a classe operária foi desde logo expulsa do poder político pela burocracia. Nisto se resume o paradoxo da revolução chinesa de 1949.
A economia chinesa está a crescer mais rapidamente do que a economia americana
Hoje, a China é a segunda maior potência económica do mundo e, em muitas áreas, compete com a maior, os Estados Unidos. O facto afere-se por um número: em 1949, a China tinha 8 milhões de trabalhadores assalariados numa população de 540 milhões de habitantes, a maioria dos quais camponeses. Entre 1949 e 2019, os assalariados chineses passaram de 8 a 580 milhões. É a maior classe trabalhadora do mundo. Ora, para os marxistas, um critério essencial para medir a evolução das sociedades é a sua capacidade de desenvolver forças produtivas (a principal é a força de trabalho humana).
Esta classe trabalhadora não é apenas social e economicamente poderosa. O seu poder enquanto classe exprime-se a todos os níveis da sociedade. Se bem que a burocracia impeça os trabalhadores de formarem organizações independentes e que os sindicatos oficiais não sejam instrumentos da classe trabalhadora, todos os anos há milhares de greves na China, a que a burocracia chama “incidentes de massas” (greves, manifestações, tumultos): contaram-se mais de 1.500 no ano passado. Apesar de todos os obstáculos à sua organização, a classe operária existe e luta.
A revista americana Fortune Global 500 classifica 500 empresas mundiais pelo volume de negócios. Em 2015, os Estados Unidos representavam 127 das 500, gerando por si sós 11% do produto interno bruto (PIB) mundial. Na mesma altura, a China contava 98, gerando 8% do PIB mundial. Em 2024, os Estados Unidos passaram de 127 para 141 empresas, que produzem ainda 11% do PIB mundial, e a China de 98 para 128, gerando 9% do PIB mundial.
A maior parte destas empresas chinesas, realça a Fortune, são detidas a mais de 50% pelo Estado. É a própria revista capitalista que afirma que a economia chinesa cresce mais rapidamente do que a dos Estados Unidos, continuando essa economia a ser largamente dominada por empresas que são propriedade do Estado e não do sector privado.
Quem dirige a economia chinesa?
Quem dirige então a economia chinesa? Um enorme aparelho burocrático, encabeçado pelo Partido Comunista Chinês e pelas suas 100.000 células de empresa, que controlam tudo, desde os gestores aos trabalhadores. Quem dirige a economia é o Partido Comunista Chinês, é ele que elabora o plano, garante o monopólio do comércio externo (ou seja, o que se vende ou não vende ao estrangeiro, o que se compra ou não compra no estrangeiro), controla a moeda, etc. Esta economia não corresponde aos critérios de uma economia capitalista assente na livre empresa, na livre concorrência e na conquista dos mercados. Também não corresponde ao socialismo, ou seja, à organização de um projecto baseado nas necessidades da população. Trata-se, portanto, de uma sociedade em transição, num equilíbrio instável, da velha sociedade feudal para uma situação que a pode fazer pender para um lado ou para o outro. A alternativa perma-nece em aberto, é o que determina a situação.
As escolhas feitas pela burocracia chinesa não são guiadas pelas regras da propriedade privada dos meios de produção. Começam por ser guiadas pelas necessidades da sua própria sobrevivência. Há vários anos que se orienta cada vez mais para a abertura ao mercado capitalista, favorecendo a entrada de multinacionais estrangeiras e a formação de uma classe capitalista embrionária, que é proprietária de meios de produção, mas (pelo menos por enquanto) dentro de limites fixados pelo partido e dele dependentes. Ao ponto que certos capitalistas caídos em desgraça são pura e simplesmente eliminados. A burocracia pode também – se se sentir em perigo – tomar medidas que tenham mais em consideração a pressão dos trabalhadores. Não porque seja a favor dos trabalhadores, mas porque, como todas as burocracias, teme a revolução.
A Comissão Europeia protesta contra o “planeamento estatal na China”
E é nisso que reside o problema do capitalis-mo, mormente do capitalismo americano. Para ele – mande Trump ou Biden – as únicas regras devem ser as do mercado: explorar os trabalhadores, produzir mercadorias, extrair mais-valia, realizá-la vendendo as mercadorias, e assim por diante. Ora, o governo chinês pode perfeitamente decidir vender com prejuízo, se considerar que isso serve os seus interesses. Já o tem feito. Pode decidir (e acaba de o fazer) relançar a produção chinesa, dando mais poder de compra aos trabalhadores ou concedendo subsídios à sua economia que quebram a concorrência. Os capitalistas americanos e a União Europeia queixam-se disso todos os dias. Em Abril de 2024, por exemplo, a Comissão Europeia denunciou o “impacto do planeamento estatal na China” num relatório de 700 páginas: as subvenções estatais chinesas às suas empresas são 3 a 9 vezes superiores às concedidas pelos países capitalistas. Do mesmo passo, porém, os dirigentes chineses multiplicam-se em anúncios, como o de Xi Jinping de 28 de Março, favoráveis à abertura ao capitalismo.
Nem o imperialismo nem a burocracia conseguiram – para já – subverter as relações sociais saídas da revolução de 1949. Na China, tal teria consequências cem vezes piores do que o que aconteceu na antiga União Soviética a partir de 1991. Mas a classe operária tão-pouco conseguiu reapropriar-se dos fundamentos de uma economia estatizada, pô-la ao seu serviço e reatar a sua marcha para o socialismo. A evolução destas contradições será, para usar a fórmula de Leon Trotsky para a URSS em 1936, resolvida no terreno da luta de classes, tanto na China como a nível internacional.
Os trabalhadores do mundo não podem ser neutros
A crise do capitalismo faz com que deixe de ser possível que os dois sistemas continuem a coexistir. Trump diz que vai resolver a questão, obrigando os chefes chineses a capitularem, impondo o regresso ao capitalismo, pela guerra, se necessário. Mas a classe trabalhadora pode resolver de outra maneira. Por isso entendemos que, em caso de conflito entre o imperialismo americano e a China, os trabalhadores do mundo não podem ficar neutros. Foi o que disse aos trabalhadores de França e do mundo o camarada chinês presente no encontro internacional de 21 de Março em Paris: “uma guerra contra a China seria uma guerra pelos mercados, uma guerra de classes. Em caso de agressão militar dos Estados Unidos, os trabalhadores de todo o mundo deverão estar ao lado da China, dos trabalhadores chineses, independentemente do regime do Partido Comunista Chinês!”.