Costuma começar assim

O cronista liberal João Miguel Tavares, conhecido — pelo menos dele próprio — por falar de tudo sem papas na língua e dispensando a melíflua hipocrisia dominante nos meios “com responsabilidades políticas”, publicou, no dia 2 de Maio, no órgão de imprensa detido pela segunda família mais rica do país, o Público, uma crónica a apelar à proibição da greve no sector público e empresas do Estado.

Diz JM Tavares que “o direito à greve no sector do Estado, com a extensão actual, é um factor de enorme injustiça social, porque não são os ricos, mas os pobres, que sofrem com essas greves. Quantos programas eleitorais abordam este problema?

Revelando-se ligeiramente mais melífluo e hipócrita do que gosta de parecer, JM Tavares não escreve: “proíbam as greves!”

Diz antes que considera “lamentável que todos os partidos políticos — (…) Iniciativa Liberal incluída — não tenham a coragem de colocar em cima da mesa eleitoral um dos problemas que mais afectam este país: as greves recorrentes e insaciáveis no sector do Estado, que deixam utentes sem comboios, alunos sem aulas e doentes sem atendimento.

Nem o Chega, vejam bem, que até propõe estender o direito à greve à polícia!

Numa coisa JMT tem razão. O problema é, de facto, recorrente.

Tem, também, uma causa recorrente.

Essa causa é muito fácil de comprovar. Basta compulsar estatísticas, acessíveis, sobre o poder de compra dos trabalhadores, do Estado como do privado. Ele tem-se degradado quase ininterruptamente desde o início do século, desde a introdução do euro.

E não é só a degradação paulatina, anual, dos salários, subindo, em média, menos do que o índice de preços ao consumidor. E nem é só, também, esse efeito ainda ser distorcido pela subida, em percentagem, um pouco maior, do vergonhosamente baixo salário mínimo — que, sendo auferido por um em cada cinco trabalhadores puxa para cima a variação percentual média dos salários — aproximando cada vez mais trabalhadores do salário mínimo.

Mais do que tudo isso, há o simples facto de o índice oficial dos preços não medir o aumento explosivo do peso das despesas de habitação no rendimento dos trabalhadores. Tão explosivo que eles, porque não os podem suportar, têm de ficar em casa dos pais, se são jovens; e, se não são, têm de ir viver para muito longe de onde trabalham, arrastando outros custos, de transporte, etc.

Em suma, piorando constantemente o seu nível de vida.

Propõe o nosso homem de língua livre de papas resolver a causa do “problema“?

Claro que não. É que se na língua ele não traz papas, já nos olhos leva antolhos: antolhos de que voluntariamente se albarda, para não ver o que está bem à vista.

Assim, JMT denuncia todos os partidos do seu próprio campo, PSD, IL, Chega, porque não ousam pôr no seu programa eleitoral a proibição do direito à greve.

Costuma começar assim.

Hoje o sector público… amanhã, quiçá, os motoristas de matérias perigosas — cuja greve foi, aliás, proibida, com uso de tropa — porque, bom, as matérias são perigosas, e sem elas, as bombas de gasolina ficam vazias… e a seguir, é claro, os estivadores, porque, enfim, se não se descarregam as mercadorias, elas não se podem consumir e se não se carregam as exportações, onde vai parar a economia do “país”… depois os trabalhadores dos super-mercados, também era boa ideia, que, se eles fazem greve, morre tudo à fome…

Costuma começar assim. Com um grande defensor da liberdade a defender a sua supressão. Em nome da liberdade e da comodidade, dele e dos seus amigos capitalistas.