
[Ver no final quadro com as principais variações de votação]
A imolação da “esquerda”
Para deduzir as principais conclusões das eleições de 18 de Maio de 2025, não é má ideia socorrer-nos do comentador favorito da direita “descomprometida”, JM Tavares. Escreveu JMT no Público, no próprio dia 18 de Maio, que “o voto no Chega não é um voto “na direita”, no sentido clássico do termo. É um voto no partido que ataca com brutalidade as regras institucionais do regime.”
JMT acrescenta que a “grande notícia” destas eleições é que “o país parece ter-se fartado definitivamente de ver uma esquerda defender, com gigantesca hipocrisia, o SNS, a escola pública ou os transportes públicos, ao mesmo tempo que assiste à absoluta degradação dos serviços que é suposto amarem de forma assolapada.”
Mas “assistir” é, neste contexto, palavra lassa e imprecisa. A “esquerda“ não se limitou a “assistir” à degradação do que “amava”(?): promoveu conscientemente essa degradação.
Disciplinado pelo chicote de Bruxelas (onde depois, bom aluno, se refugiou), Costa, ajudado pelos seus preciosos cúmplices, Jerónimo e Catarina, estrangulou o investimento público; comprimiu os salários reais do sector público (também com a ajuda dos chefes da CGTP); manteve a mordaça da caducidade à contratação colectiva; atacou o direito à greve, chegando a requisitar a tropa para furar a greve dos motoristas de matérias perigosas e destruindo os estivadores…
A “esquerda” mais do que “deixou” apodrecer os serviços públicos de saúde, ensino, habitação, transportes. No governo, desempenhou o papel que tradicionalmente compete à direita — mas que esta, desde a troika, ficou demasiado fraca para conseguir executar com eficácia.
A política das “contas certas” adveio em linha recta, lembre-se, da obrigação de reduzir o défice e a dívida, às ordens da troika. E lembre-se aos mais distraídos: a troika continua a sua actividade em Portugal até 2030; só deixou de enviar “missões” locais.
Nesse sentido, como JMT reconhece, “o voto no Chega (…) é um voto no partido que ataca com brutalidade as regras institucionais do regime”, muito mais do que um voto de “direita”.
A demagogia infrene do espertalhão Ventura conseguiu captar a fúria contra o regime UE/NATO, que condena o país, principalmente os trabalhadores, à frustração das aspirações que legitimamente beberam na revolução proletária incompleta de 1974/75. O regime que os condena, dia após dia, à miséria pura e simples.
Nos últimos dez anos, a esquerda institucional viu-se ante uma escolha: ou servir a razão para que a esquerda originalmente nasceu, que era defender sem contemplações os interesses das classes trabalhadoras contra o capital; ou subordinar os interesses específicos do mundo do trabalho à estreitíssima armadura dos tratados da UE e da NATO, tratados estes que, embora todos evitem dizê-lo, são a verdadeira Constituição do país — não aquela aprovada em 1976.
Recorde-se que uns 90% do que o Parlamento português aprova são meras “transposições” para o direito português de decisões, directivas e regulamentos aprovados pelo Conselho e Parlamento Europeu sob iniciativa e proposta da Comissão Europeia, que ninguém elege. Recorde-se, também, que PS e BE votaram, no Parlamento Europeu, incontáveis milhares de milhões para a guerra da NATO na Ucrânia.
Os partidos da esquerda escolheram, sem apelo nem agravo, a UE e a NATO, a austeridade e a guerra. No governo, aplicaram a austeridade sem fim. Ainda agora apoiam a guerra sem fim do imperialismo.
Há uma relação directa entre esta escolha, que fez da esquerda mera executante da política da União Europeia, e o descalabro da esquerda.
A população rejeita a austeridade e a guerra da UE/NATO
Se, depois do trauma da troika, a população condenou os partidos da direita burguesa à travessia do deserto, a diáfana maquilhagem “de esquerda” com que a “geringonça” praticou a mesma política troikiana de direita não a livrou do mesmo deserto.
A conclusão é clara: a população continua a rejeitar a política capitalista de guerra interna e externa, apresente-se ela nua e crua ou sob a máscara “de esquerda” que os dirigentes da esquerda institucional se prontificaram a apor-lhe durante quase uma década — demonstrando extrema generosidade e espírito de sacrifício pelo regime.
Porém, a força deste voto de raiva é também a fraqueza do “novo regime” de vitória da direita, já que torna muito frágil o triunfo da extrema-direita.
Como diz JMT, “aquilo que André Ventura propõe em termos de programa político é irrelevante, e, pelos vistos, também é irrelevante que tenha deputados a roubar malas em aeroportos ou a braços com a justiça. Isso não significa que um em cada quatro portugueses [na realidade, só votou no Chega um em cada sete eleitores… — nota nossa] tenha passado a sonhar com a ditadura. Significa que não suportam o imobilismo do país, a incapacidade de resolver os seus problemas (…).”
Não esqueçamos que, em 25 de Abril de 2024, e, de novo, em 25 de Abril de 2025, manifestações monstruosas encheram as ruas de Lisboa e do país, celebrando, com enorme participação da juventude, a revolução portuguesa. A recente greve da CP mostrou a força colectiva da classe trabalhadora, quando se une. Na base, a população não esquece Abril, por muito que as cúpulas a traiam.
Ventura tem perfeita consciência desta fragilidade. Por isso quer que Montenegro governe sozinho, sem ele, livrando-o, pelo máximo tempo que for possível, de ficar associado às malfeitorias que a burguesia solverdense tem avençadas e preparadas para os trabalhadores: do ataque ao direito à greve que o mesmo JMT exigiu vigorosamente no Público, escrevendo ser “claro que é preciso pôr cobro a isto e mexer na lei da greve!” (9 de Maio, a propósito da greve dos trabalhadores da CP), à privatização do que resta do SNS e dos serviços públicos.
O significado de “Ventura, líder da oposição“, é: que seja o PS de Carneiro (ou doutro que o valha) o “responsável” viabilizador de Montenegro, cometendo o harakiri social-democrata já conhecido das Franças e Araganças e evitando a Ventura, por mais uns tempos, ter de tirar a máscara anti-regime e anti-corrupção que tanto lhe tem servido e revelar a carantonha de caceteiro do capital que se esconde atrás dela.
Gouveia & Melo sobe o periscópio; mas falta o principal
Ninguém sabe que acordos Venturas e Montenegros celebraram com o ex-almirante candidato a bonaparte. Mas sabe-se que, logo no dia seguinte ao anúncio da candidatura do sub-aquático “homem forte”, Ventura declarou que afinal não se candidatava a Belém.
Na sua “inopinada” intervenção de 14 de Maio, a quatro dias das eleições, o ex-almirante disse que “o Presidente da República, por ser eleito por maioria e não dependente de partidos, pode contribuir de forma muito decisiva para a estruturação da política de médio e longo prazo, com uma visão estratégica, e para as reformas estruturais que há muitos anos estão por fazer na sociedade portuguesa“.
Gouveia & Melo deixou claro o seu programa bonapartista, que consiste em exercer poderes que a Constituição (actual) não lhe dá. No seu “manifesto”, fez questão de elucidar o que são as suas “reformas estruturais”: “os empresários na linha da frente do caminho para a prosperidade”; “a prosperidade só se materializará numa economia de mercado livre”; o presidente tem “o poder de convocar eleições antecipadas e reiniciar o sistema fora dos períodos eleitorais previstos, ou mesmo, em situações especiais, demitir o Governo”…
Para Montenegros, Gouveias (e Melos) e Venturas, a tarefa central do próximo governo é privatizar, liberalizar e precarizar sem freio; e restringir seriamente as liberdades democráticas, particularmente o direito à greve.
Mas Ventura prefere imolar Montenegro no altar do programa da burguesia. Assim, abre caminho ao almirante e a si próprio e seus Machados acólitos, que são os últimos recursos para dobrar o movimento operário.
A questão central mantém-se, na verdade, essa: é preciso dobrar o movimento operário, e ele está longe de estar dobrado. Mal os resultados eleitorais se tornavam conhecidos, os trabalhadores do Metro de Lisboa, manifestamente pouco intimidados, iniciaram uma greve de 30 dias ao trabalho extraordinário…
Mais urgente do que nunca fica a tarefa dos que não abandonaram o combate do Manifesto Comunista contra o Estado capitalista, por uma sociedade sem classes: ajudar os trabalhadores a readquirirem os instrumentos de organização sindical e de organização e consciência política — particularmente um partido seu — que lhes permitam avançar para o derrube do capitalismo, para a socialização dos grandes meios de produção e troca, para a democracia plena dos trabalhadores, para o socialismo.
Para essa tarefa, apelamos, enquanto Plataforma por um Partido dos Trabalhadores, a todos os trabalhadores conscientes, aos jovens revolucionários, às organizações e grupos que se consideram vinculados a este mesmo objectivo: discutamos, construamos juntos uma plataforma de que possa sair um Partido dos Trabalhadores que represente exclusivamente os seus interesses, sem compromissos com a classe dominante, as suas instituições e o seu Estado.
Os resultados eleitorais de 18 de Maio
Os elementos fundamentais do resultado eleitoral são os seguintes (deixando de lado os resultados da emigração, menos de 1% do total e, para este efeito, de menor interesse):
— o número de votantes desceu ligeiramente (-175 mil, para pouco menos de 6 milhões), mas manteve-se ao nível elevado atingido em 2024;
— a AD subiu a votação, mas apenas ligeiramente: 140 mil votos, para 1,9 milhões de votos; manteve-se abaixo do nível habitual de votação do PSD/CDS até ao choque da troika, reflectido nas eleições de 2015;
— a direita “tradicional”, incluindo, portanto, a novel Iniciativa Liberal, alcança, no total (AD+IL) 2,3 milhões de votos: o nível que habitualmente a direita obtinha até 2015;
— o PS teve um resultado catastrófico: perdeu 365 mil votos para 2024 (e mais de 800 mil para 2022). Pior resultado eleitoral do século.
— o PCP perdeu mais 21 mil votos (10%) para a votação de 2024; atingiu a sua votação mínima, 181 mil votos (3% dos votantes);
— o Bloco de Esquerda despenhou-se para 120 mil votos (2% dos votantes); perdeu mais de metade da votação de 2024; perdeu 80% da votação obtida em 2015; o seu resultado foi pior do que os resultados (em separado!) do PSR e da UDP antes de estes formarem o BE;
— a extrema-direita subiu mais 240 mil votos desde 2024; atingiu 1,345 milhões (22,5% dos votantes, ou 14,5% do eleitorado). Em cinco anos, subiu mais de um milhão de votos;
— assim, além do indesmentível descalabro da “esquerda” obediente à UE e à NATO, nota-se que o ascenso do voto na extrema-direita começou por beber no desespero de segmentos da população que durante muitos anos se refugiaram na abstenção para mostrar a sua desilusão com a “política”: o milhão de votos a mais de participação eleitoral desde 2019 corresponde muito sensivelmente ao aumento espectacular da votação na extrema-direita; nestas mais recentes eleições, nota-se, porém, que alguns sectores empobrecidos e pouco organizados dos trabalhadores, nomeadamente no Alentejo e vale do Tejo, foram também ganhos ao voto no Chega;
— um pormenor pouco referido: desde 2013, ter-se-ão naturalizado umas 400 mil pessoas e, nos dez anos até 2020, concederam-se umas 215 mil autorizações de residência permanente, que dão direito de voto a partir do quinto ano. É de admitir que pelo menos meio milhão de estrangeiros, em que o principal contingente é o brasileiro, tenham adquirido direito de voto no último período. Não é difícil admitir que, dada a força do evangélico-bolsonarismo na população de origem brasileira, uma parte desproporcional desse voto tenha ido para o Chega; curiosa ironia: o Chega a prosperar com o voto dos “estrangeiros”…