Orçamento de 2017: Mais Um Mal Menor?

O que representa o voto do BE e do PCP a favor do orçamento do governo e da Comissão Europeia para 2017

O orçamento para 2017 foi aprovado pela Assembleia da República, com os votos do PS, do PCP e do BE. Foi também preliminarmente aprovado pela Comissão Europeia. Não admira: o orçamento inclui uma previsão de défice orçamental com o valor mais baixo desde o 25 de Abril (1,6%), valor que cumpre, sobretudo, o quadro imposto por Bruxelas para reduzir a dívida pública. Enquanto isto, o serviço da dívida pública, a pagar à grande banca internacional, atingirá, em 2017, mais de 9 mil milhões de euros. Isto significa que o saldo primário do orçamento (ou seja, o saldo que não inclui o serviço da dívida pública) é positivo: representa 2,8% do PIB.

Na linguagem económica oficial, este tipo de política fiscal do Estado, que retira por via de impostos e outras receitas mais dinheiro da actividade económica do que gasta em despesa pública, recebe o nome de “política fiscal recessiva”. Em linguagem corrente: “política de austeridade”.

Os factos estabelecem-se, então, assim: ao fim de quase dez anos de uma crise que açoitou os trabalhadores portugueses, baixou salários e pensões e cortou drasticamente o investimento público, com a degradação universalmente visível do sistema de saúde pública, do ensino e dos transportes urbanos, o orçamento que o governo de António Costa faz aprovar para 2017 é (mais) um orçamento de austeridade.

A questão do investimento público é das que mais dizem: o governo declara que “o investimento público (FBCF) sobe 21,9% em 2017, passando de 1,9% do PIB em 2016 para 2,2% do PIB em 2017” (https://www.oe2017.gov.pt/orcamento-do-estado/(link is external)). O governo não declara: que em 2016, para cumprir os ditames de Bruxelas, o investimento público baixa 6,1%(1), de 2,3% para 1,9% do PIB. Resultado: o “grande” aumento de 21,9% previsto para 2017 nem sequer chega para voltar ao nível de investimento público de 2015, ano de total austeridade troikiana/passoscoelhiana!

Dá, por exemplo, o Bloco de Esquerda por isso? Dá.

Diz, bem, Catarina Martins que este défice baixo (exigido por Bruxelas e aceite pelo governo) visado pelo orçamento para 2017, se faz “na verdade (…) à conta do investimento na escola, nos hospitais, na cultura e na ciência, que todas as pessoas percebem ser precisa neste país” (à Antena 1, 30 de Novembro, http://www.esquerda.net/artigo/orcamento-vem-demonstrar-urgencia-da-reestruturacao-da-divida-publica/45761(link is external)). Porém, o BE (e o PCP) votam esse orçamento; ajudam a executar uma política de redução do défice à custa do investimento que é preciso neste país.

O investimento público constitui bens públicos que representam uma fracção significativa do nível de vida dos trabalhadores (saúde, ensino, transportes). Cortá-lo é, pois, quase sempre cortar o nível de vida dos trabalhadores, o seu “salário colectivo”.Porém, não é só esta parte do nível de vida dos trabalhadores que o orçamento para 2017 continua a atacar.

Diz, bem, Catarina Martins que, “com a troika foi destruída a contratação coletiva e foram precarizados os postos de trabalho. Nós precisamos de recompor a legislação do trabalho. (…) Nós achamos que um compromisso mínimo com o Partido Socialista seria retirar aquelas normas [do Código do Trabalho] que a troika obrigou a pôr” (à Antena 1, 30 de Novembro, ver http://www.esquerda.net/artigo/orcamento-vem-demonstrar-urgencia-da-reestruturacao-da-divida-publica/45761(link is external)).

Um compromisso mínimo com o Partido Socialista seria (…)”. Seria?

Catarina Martins tem razão. Seria o compromisso mínimo. Mas o acordo que o BE actualmente apoia não atinge esse mínimo. Ou seja, se as palavras têm um significado, o BE apoia uma política que não só não corresponde inteiramente ao seu programa por mor de “compromissos necessários” para viabilizar o governo do PS. Apoia uma política que, diz a própria coordenadora do BE, vai contra os seus próprios mínimos. Com efeito, é uma política e um orçamento que dois conhecidos comentadores do programa ‘Bloco Central” da TSF (http://www.tsf.pt/programa/bloco-central/emissao/bloco-central—orcamento-de-estado-aprovado-5480546.html(link is external)) apontavam secamente como documento “que o PSD, um PSD que não este PSD, não teria qualquer problema, antes pelo contrário, em apresentar ou aprovar.

Pelo menos, o capital aplaude o sacrifício das posições mínimas do BE. E do PCP. Pois, na verdade, o problema é de fundo e engloba o outro apoiante do orçamento, o PCP.

O seu secretário geral reeleito, Jerónimo de Sousa, fazia declarações à TSF, no dia 6 de Dezembro, que representavam a mesma cambalhota política autodescrita por Catarina Martins. Depois de, com muita razão, apontar o declínio contínuo e inexorável sofrido pela economia portuguesa desde o Tratado que criou o euro, o secretário geral, apertado pelo jornalista para saber se o PCP era, então — logicamente — pela saída do euro, disse, essencialmente, que — não! Que, por ser “responsável”, era, não pela saída do euro, mas por um “processo”; não se sabe bem que processo, mas subentende-se que, durante o “processo”, Portugal continuaria submetido à ditadura do euro e, portanto, ao declínio continuado que, segundo o próprio secretário geral, ela inexoravelmente acarreta.

Bruxelas, certamente, aplaude, pois para “processos” está Bruxelas aí.

Ou, quanto ao outro ponto crucial da situação, a dívida pública:

Refere Catarina Martins, na mesma entrevista acima citada, que o orçamento, baixando o défice à custa do investimento nas escolas, saúde e transportes, “[vem] demonstrar [a] urgência da reestruturação da dívida pública. Temos que fazer caminho sobre essa proposta.”” Na verdade, o serviço da dívida pública absorve “quase tantos recursos como o Serviço Nacional de Saúde e mais que a escola pública”. Porém, o BE aprova o orçamento sem “restruturação” da dívida pública. Nem agora, nem nunca: o ministro das finanças já veio esclarecer em público que o governo só concebia qualquer restruturação da dívida pública no quadro das regras europeias. Ou seja, só se os proprietários da dívida pública portuguesa aceitarem restruturá-la em seu desfavor. Ou, como alguém dizia, se o Pai Natal afinal existir.

O BE e o PCP cultivam uma curiosa política: consideram que a revogação dos atentados do governo precedente ao Código do Trabalho é o “mínimo” que se podia exigir de um acordo com o PS. Mas como pelos vistos “não é possível” atingir esse mínimo (tratados europeus obligent…), faz-se e apoia-se uma política abaixo do mínimo exigível, ou seja, uma política de execução dos ditames de Bruxelas. O PCP acha que o salário mínimo de 600€ era o mínimo exigível para dar um pouco de dignidade aos trabalhadores portugueses. Mas como (tratados europeus obligent…) isso não é possível, faz e apoia uma política que vai contra o mínimo de dignidade dos trabalhadores portugueses. O orçamento 2017 do governo demonstra, aos olhos do BE, a necessidade de “restruturar” a dívida pública. Mas o BE e o PCP aprovam o orçamento sabendo que este governo (tratados europeus obligent…) não “restruturará” a dívida pública.

Em resumo: o BE e o PCP dizem ter uma política. E dizem que o orçamento faz o contrário dessa política. E concluem, fazendo a política do orçamento. Em troca de “processos” e “caminhos” imaginários.

Entretanto, as restrições orçamentais contidas no orçamento para 2017 continuarão, com o apoio do BE e do PCP, a obra de destruição dos transportes públicos, do serviço nacional de saúde e do ensino e manterão os salários abaixo da dignidade mínima dos trabalhadores portugueses.

Só a mobilização independente dos trabalhadores, com as suas organizações, poderá impedi-lo.

NOTA

(1)O próprio relatório do orçamento 2017 explica porque houve este extraordinário recuo da despesa do Estado: “o Governo encontra-se inteiramente comprometido com os compromissos assumidos com a Comissão Europeia, pelo que, por forma a compensar os desvios negativos identificados na receita fiscal, não serão utilizados 445 milhões de euros de cativos inscritos no Orçamento do Estado para 2016” (página 30 do relatório do OE2017). Que compromissos eram esses? Eram as famosas medidas adicionais que a Comissão exigiu para deixar passar o orçamento para 2016 e que o governo na altura fez de conta que “não eram necessárias”, que não era preciso plano B (ver nosso artigo nestas páginas). O governo cumpriu, pois, escrupulosamente, as ordens de Bruxelas de cortar mais 450 milhões na despesa (valor superior à famosa multa que generosamente foi “cancelada”), simplesmente mandando não executar uma parte da despesa prevista no orçamento.

AZ, 7 de Dezembro de 2016