O que é o fascismo?

Aproximam-se as eleições europeias. O Rassemblement National em França, como o Chega, em Portugal e partidos do mesmo tipo noutros países, aparecem em progressão nas sondagens. Exige-se uma reflexão sobre o que a extrema-direita representa.

Quando se fala de fascismo, faz-se amiúde como se ele fosse uma coisa em si, separada do resto. Chega-se à questão do fascismo e do antifascismo, e todas as demais referências desaparecem. Ora, a verdade é que o fascismo é uma das formas de dominação da classe capitalista: uma sua forma específica.

O que ele não é, porém, é um fenómeno exterior á luta de classes, às categorias políticas. Os instrumentos do marxismo permitem fazer uma aproximação e uma análise ao significado do fascismo.

 Leon Trotsky viu-se na contingência de escrever muito sobre o fascismo. Não só de escrever sobre ele, mas de combatê-lo. O contexto histórico exacto foi o da ascensão de Hitler ao poder, em 1933.

À época, Leon Trotsky, se bem que já expulso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), ainda continuava, do exterior, a travar batalha pela sua regeneração. Laborando na hipótese de ainda ser possível endireitar o PCUS e a Internacional Comunista, ele atribuía extrema importância ao que sucedia na Alemanha no início dos anos trinta. A Alemanha era o país onde a classe operária era mais numerosa e organizada. Era o país com maiores tradições de luta de classes. Não obstante, no final dos anos vinte, início dos anos trinta, ganhou forma a possibilidade de o fascismo lá ser instaurado. Tal possibilidade afigurava-se uma aberração a qualquer pessoa de bom senso dessa época: a Alemanha era, por definição, o país do movimento operário, de um movimento operário poderosíssimo, com um Partido Comunista, um Partido Socialista, sindicatos com influência em milhões de filiados. Se país havia em que era inconcebível que o pêndulo se virasse para o lado da reacção, era a Alemanha. Porém, como se sabe, os nazis chegaram ao poder. Não era um dado adquirido. É, pois, necessário compreender porquê e como se tornou possível o desastre.

Trotsky e os seus camaradas da Oposição de Esquerda da altura não só escrevem, como se batem para ajudar a impedir a vitória do nacional-socialismo. Num dos seus numerosos textos, Trotsky, tentando compreender o carácter geral do fenómeno, dá uma definição do fascismo: “O fascismo não é um mero sistema de repressão, de violência e de terror policial. O fascismo é um sistema de Estado específico, assente na extirpação de todos os elementos de democracia proletária existentes na sociedade burguesa.

O que caracteriza o fascismo é que, com ele, é preciso extirpar, aniquilar tudo o que o movimento operário impôs à sociedade burguesa: os sindicatos, partidos, contratos colectivos, direitos colectivos. Trotsky refere que “a tarefa do fascismo não é apenas esmagar a vanguarda comunista; é manter a classe como um todo numa situação de atomização forçada.” O termo atomização é importante: os laços colectivos, tal como se manifestam na existência de sindicatos e partidos e que fazem com que a classe operária seja uma classe consciente, têm de ser reduzidos a estilhas. Cada operário é reduzido à sua situação individual face ao capital, numa relação de exploração.

É essa a função do fascismo. Não chega exterminar fisicamente a camada mais revolucionária dos operários. É preciso esmagar todas as organizações livres e independentes, destruir todas as bases de apoio da classe operária, aniquilar o resultado de três quartos de século de trabalho do movimento operário. O fascismo não é simplesmente um regime autoritário, não é simplesmente um regime totalitário, não é simplesmente um regime repressivo. É tudo isso; mas é, especificamente, um regime que tem a função de reduzir a nada os laços organizados entre os trabalhadores; de reduzir a nada todas as formas de organização da classe operária; e, naturalmente, para esse efeito, de reduzir também a nada toda a democracia, toda a liberdade de expressão, todas as formas de organização democrática.

Num dos seus textos, Trotsky teve que polemizar com os dirigentes estalinistas do Partido Comunista Alemão e do Partido Comunista da União Soviética, que faziam campanha explicando que não havia que estabelecer diferença entre fascismo e democracia burguesa, dado os dois regimes terem o mesmo conteúdo de classe; a saber, o domínio da classe capitalista. Trotsky respondeu a este argumento, dizendo: sim, é claro que, tal como a democracia parlamentar, o fascismo é um regime político burguês, que reflecte a dominação da classe capitalista. Importa, contudo, conferir se há diferenças. A diferença não reside na natureza da classe dominante. O capitalismo pode dominar recorrendo ao parlamentarismo ou recorrendo ao fascismo, são duas das suas formas de dominação. Em contrapartida, no ponto de vista da classe operária, sim, há uma diferença. Durante dezenas de anos, os operários construíram no interior da democracia burguesa, usando-a, do mesmo passo que lutavam contra ela, os seus bastiões, as suas bases, focos de democracia proletária plasmados nos sindicatos, nos partidos, nos clubes de formação, nas organizações desportivas. Para chegar ao poder, a classe operária precisa de se estribar nessas bases. Ora, “o fascismo tem a função principal e única de destruir até aos alicerces todos os bastiões da democracia proletária”, escreve Trotsky. Para a classe operária, terem ou não terem os operários liberdade de formar sindicatos, partidos e jornais, exprimirem-se e organizarem-se livremente ou não, faz diferença para a sua capacidade de actuar como classe operária. Como diz Trotsky, para quem se coloque no ponto de vista dos interesses da classe operária, há diferença entre fascismo e outros modos de dominação capitalista. No texto, ele esclarece que isso não significa que a burguesia recorra ao fascismo em toda as circunstâncias. Em tempos normais, a burguesia prefere todas as formas de democracia burguesa, incluindo o parlamentarismo. Enquanto se puder servir da social-democracia para manter a sua dominação, isso é preferível para a burguesia. Digamos que sai mais barato, explica Trotsky (nas condições de hoje, traduza-se o termo social-democracia pelo de “esquerda”).

Há, contudo, circunstâncias em que a burguesia se vê obrigada a recorrer ao fascismo. Ou em que, em todo o caso, escolhe o fascismo. Fá-lo um pouco a contragosto. Hesita. Com efeito, o fascismo, a irrupção da pequena burguesia com métodos extremamente violentos é o caos na sociedade, é muita coisa ser posta em causa, não só os direitos dos operários, mas também a organização social no seu conjunto. Ainda assim, há circunstâncias em que a burguesia entende não ter alternativa. Trotsky usou esta fórmula: “A burguesia usa o fascismo, mas tem medo dele.” Em 1930, antes de os fascistas tomarem o poder, escreveu que “a grande burguesia alemã hesita. Há desacordos internos. Os desacordos não incidem apenas na escolha do tratamento a aplicar à crise social. A terapêutica social-democrata repugna a uma parte da grande burguesia. Tem resultados incertos e encerra o risco de despesas gerais muito elevadas (impostos, legislação social, salários).” Recorrer aos aparelhos sociais-democratas ou outros para manter a ordem burguesa tem, assim, custos. É preciso fazer concessões aos operários, é preciso aceitar que os salários aumentem, que os sindicatos tenham direitos, etc.

Prossegue Trotsky: “A intervenção cirúrgica fascista afigura-se à outra parte demasiado arriscada e injustificada pela situação.

Entre as duas opções, a burguesia alemã, particularmente os magnates industriais, fazem a sua escolha: pendem para apoiar os nazis e financiá-los.

Assim, o fascismo não emerge de lado nenhum. Surge da luta de classes e surge das escolhas que a classe capitalista se vê na contingência de fazer em certos momentos da sua crise, para tentar sair dela. E quando faz a classe capitalista a opção pelo fascismo, e por que razões? Para responder a esta questão, examinemos de novo a caracterização do imperialismo. O mercado mundial está constituído. As diferentes burguesias, que competem umas com as outras, já só podem ganhar quotas de mercado travando guerras impiedosas umas contra as outras. Ora, no início dos anos trinta, o capitalismo alemão está posto numa situação particular, por razões históricas. Não conseguiu conquistar colónias, como a burguesia francesa ou a burguesia inglesa. O capitalismo alemão é muito desenvolvido no ponto de vista das forças produtivas e tem uma indústria muito ambiciosa; mas, por outro lado, o mercado de que dispõe mantém-se limitado. O primeiro problema, para a burguesia alemã, é, portanto, que ela precisa de conquistar mercados – mas não há espaço. Além disso, tinha perdido a Primeira Guerra Mundial. Tivera que pagar as reparações decorrentes do tratado de Versalhes. Encontrava-se, consequentemente, numa situação dificílima. Precisava de poder partir à conquista de novos mercados, mas as condições impostas pelo tratado de Versalhes tornavam-lho completamente impossível. A classe capitalista alemã tem de lidar com um segundo problema: a própria classe operária. Esta é numerosa, é poderosa. No plano eleitoral, o Partido Comunista e o Partido Socialista, no final dos anos vinte e na viragem para os anos trinta, são maioritários. Têm uma organização poderosa. A Alemanha conhecera vários episódios revolucionários, em 1919, 1921, 1923. Depois, houve a crise económica mundial. A Alemanha está arruinada. A classe operária, com milhões de desempregados, procura resistir, procura bater-se. Faz manifestações, faz greves, tem as suas próprias milícias de defesa. A burguesia alemã não consegue contê-la pelos meios tradicionais. Não consegue fazê-la refluir, não consegue calar os trabalhadores, que persistem nas suas reivindicações. Não lhes consegue impor condições de exploração consentâneas com as necessidades do capitalismo. Os meios tradicionais, que são os meios de uma democracia parlamentar muito musculada, de um bonapartismo que, por muito totalitário que seja, sempre respeita algumas formalidades democráticas, obrigam a burguesia alemã a tolerar a existência de partidos operários. Reprimem-se os operários, mas os partidos têm direito de existir, a imprensa tem direito de falar, os sindicatos têm direito de existir.

Há, também, a chamada pequena burguesia, constituída pelas camadas intermédias entre a classe operária e a burguesia: pequenos comerciantes, pequenos artesãos, mas também sectores desclassificados da classe operária, em tempos de crise e de desemprego de massa.

A burguesia alemã experimentará todo o género de soluções: governos cada vez mais autoritários, governos presididos por chanceleres apoiados por sectores do exército. Porém, mesmo assim, a situação escapa-lhe. Prepara-se um choque entre o partido nazi em ascensão e os partidos operários. A questão “revolução ou contra-revolução” está na ordem do dia. Num dado momento, a burguesia alemã decide-se por Hitler. Decide-se, nessa medida, por um embate brutal que, para usar a fórmula de Trotsky, visa “atomizar a classe operária”, destruir os partidos, destruir os sindicatos e reprimir totalmente todas as formas de representação dos trabalhadores. Tanto é dizer: atentar contra todas as formas existentes da democracia política.

O exemplo da Alemanha tem valor mais geral. Temendo a revolução proletária, temendo que o poder lhe escape, temendo que a classe operária a obrigue a recuos extremos, a burguesia pode ver-se levada a escolher o fascismo. O que a norteia é a defesa dos seus interesses gerais num dado momento, contra a classe operária, contra os imperialismos concorrentes, etc.

Para tal, instrumentaliza o fascismo, que tem o condão de arrastar consigo a pequena burguesia desesperada, fazendo-lhe crer que, pelo triunfo da nação, pelo triunfo da raça, um futuro se lhe abrirá… outros tantos enganos.

Mas tudo depende da situação. A burguesia socorre-se dos últimos vestígios de democracia parlamentar que sobram na Alemanha antes de 1933; depois, recorre ao Terceiro Reich, por uma dúzia de anos; com a derrota do nacional-socialismo, recorrerá à República Federal Alemã (como todas as burguesias do mundo, que sabem defender os seus interesses socorrendo-se dos vários modos de domínio político, por mais diferentes que sejam). Seja como for, um dos primeiros efeitos do fascismo na Alemanha foi a destruição do movimento operário e, para tal, a destruição da democracia política. Recorde-se que, cronologicamente, antes de as primeiras perseguições anti-semitas de massas começarem na Alemanha, já havia um milhão de militantes operários e democratas internados nos campos de concentração de Hitler; não por serem de origem judaica – podiam, alguns, sê-lo – , mas por serem militantes operários ou defensores da democracia. A primeira característica do nacional-socialismo é a necessidade de decapitar completamente, de aniquilar qualquer forma de movimento operário ou democrático. E, naturalmente, proibir as organizações. As organizações do movimento operário, políticas e sindicais, são muito rapidamente proibidas.

Retornando à situação atual: se nos situarmos no ponto de vista do movimento operário, a questão que se põe é como defender as instituições operárias ou, recorrendo à expressão de Trotsky, “os bastiões de democracia proletária inseridos nos interstícios da sociedade burguesa”.

Pelas suas lutas, greves e manifestações, os operários conquistaram direitos que passaram a ser “instituições nos interstícios da sociedade burguesa”. Como defender tais conquistas democráticas? Uma maneira, que os aparelhos propalam, é a de, diante do fascismo, “toda a gente” se unir: os operários unirem-se à parte da burguesia que se mantém apegada à democracia. Unidade com a burguesia democrática ⎼ ou outra variante: defender a parte democrática da burguesia contra a ameaça do fascismo. Esta questão pôs-se na Alemanha, no início da década de trinta. O Partido Social-Democrata, por exemplo, dizia que era preciso defender o chanceler Brüning, um reaccionário encartado que não punha em causa a República burguesa. Diziam os sociais-democratas que era preciso defender o chanceler Brüning contra a ameaça de Hitler. Ao que Trotsky e os militantes que o rodeavam objectavam que Brüning, que reprimia os operários e os metia na prisão, que mandava disparar à toa e deixava prosperar os grupos fascistas, não fazia mais do que abrir caminho aos nazis. Questão muitíssimo actual. Votar Macron para evitar Marine Le Pen? Montenegro, melhor que Ventura? Claro que nem Marine Le Pen nem Ventura são Hitler. Tão-pouco Macron ou Montenegro são Brünings. Não obstante, ouve-se esta retórica. Ora, é consabido que, quando há verdadeiro perigo fascista, ele é fruto da decomposição da dominação clássica da burguesia parlamentar; é fruto, portanto, da acção dos dirigentes “democráticos” da burguesia. Não é aliando-nos a eles que vamos impedir a ascensão ao poder de Le Pen ou de Ventura.

Os aparelhos podem, também, desenvolver outra campanha política: face à ameaça do fascismo, defendam-se as instituições do Estado democrático tal qual é. Só que o Estado democrático tal qual é é o Estado em cujo seio amadurece e avulta o perigo fascista. Os grupos armados, os sectores da polícia e do exército que passaram para o outro lado eram, nos anos trinta, sectores do Estado ⎼ como hoje o são os “movimentos zero”. Portanto, o problema não é a defesa do Estado. O problema é: como hão-de os trabalhadores defender as instituições operárias, que são o cerne da democracia política, que eles arrancaram ao Estado burguês? Não defender a democracia em geral: defender o conteúdo que a classe trabalhadora conferiu à democracia.

Reponhamo-nos na realidade, que é a da sociedade dividida em classes sociais com interesses antagónicos. Por definição, um regime fascista, para soldar a nação, nega a existência das classes sociais. O regime fascista pretende que não existe luta de classes. Procura aniquilar tudo o que é reflexo da luta de classes, em primeiro lugar os sindicatos e os partidos operários. Os fascistas dizem que, como somos todos membros da mesma nação, da mesma raça, não há conflito entre nós, nem, portanto, necessidade de partidos diferentes ou de sindicatos de classe. Este discurso fascista justifica a destruição de todas as formas de democracia. Para tal, há necessidade de ferramentas ideológicas como a da raça. Hitler chegou ao poder para alicerçar a dominação capitalista da forma mais brutal possível. Nessa forma brutal, havia a necessidade de afirmar a superioridade de uma raça sobre todas as outras, fazendo, portanto, de uma dada raça bode expiatório ⎼ pagando ela tal necessidade política do capitalismo com a vida de milhões.

Adaptado do texto “Qu’est-ce que le fascisme?“, publicado no nº 138 do boletim “Marxisme, faits et arguments”, editado pela TCI (Tendência Comunista Internacionalista), secção francesa da IVª Internacional, 20 de Abril de 2024