A Manta em que o Presidente Marcelo Aconchega o Governo Costa

Naquilo a que os comentadores chamam a sua hiper-actividade transbordante, o Presidente Marcelo em nada se rege por impulsos de conversador entusiasta e benévolo patrono do governo, não obstante (ingénuos?) dirigentes do próprio PS e comentadores parecerem deleitar-se com cada novo discurso seu.

A actuação e declarações de Marcelo, a que o bom humor serve de invólucro digestivo, constituem na realidade o “segundo anel” do “abraço do urso” da UE a Portugal (ver artigo deste título nesta mesma página). 

O primeiro anel, para esclarecer desde já a metáfora, é aquele em que o PS teve o cuidado de se envolver a si próprio e ao seu governo, ao professar (e fazer assinar pelos seus apoiantes parlamentares, PCP e BE) “o respeito pelos compromissos internacionais e europeus do país”.

Esta fórmula é o código que agora se usa para significar o primado do pagamento da dívida externa sobre as necessidades do povo trabalhador português; e, portanto, a obediência primária do governo aos tratados da UE, ao euro e seu Banco Central Europeu e às outras instituições da UE, antes da vontade do povo ou do eleitorado, da Constituição e do seu próprio programa eleitoral. 

Porquê segundo anel? Já se vê que as próprias instituições da UE são o terceiro anel. Para melhor esclarecimento, e mantendo-nos no reino animal, pense-se nos anéis que o corpo da jibóia forma para apertar até à asfixia a sua presa — a quem não resta senão espremer ela própria outro tanto a nação que por sua vez “abraça”.

Na terça-feira, 31 de Maio, Marcelo, em iniciativa inédita para um Presidente, resolveu discursar na Assembleia da República. O tema, aparentemente inócuo e presidencial: a necessidade de “consenso”. 

O consenso pretendido por Marcelo não era, porém, um vago apelo de um Presidente, elevado acima da política comezinha, aos homens, portugueses e políticos de boa-vontade. Como sublinhava na sua edição do dia o jornal em linha “Observador”, ele referia-se a um consenso bem concreto sobre a estabilidade e continuidade das políticas entre os vários governos, de modo que os cidadãos soubessem com o que contar no futuro, nomeadamente em matéria de saúde, educação e pensões: “A sustentabilidade das políticas públicas reforça a necessidade de um compromisso politico de médio e mesmo mais longo prazo”.

Curioso — quando, em princípio, se esperaria das eleições que elas servissem para eleger partidos com projectos de políticas públicas em princípio divergentes, potencialmente diametralmente opostos! 

Se deve haver consenso, por quais desses projectos, que podem ser opostos, se há-de o “consenso” pautar? A educação, por exemplo? Pelo princípio do ensino público universal, laico e gratuito? Ou pelo do financiamento público do ensino privado e… pelos cortes que a “regra do equilíbrio orçamental” ditar? E a saúde? Pelo princípio do serviço nacional de saúde universal, igual e gratuito? Ou… pelos cortes que a “regra do equilíbrio orçamental” ditar? As pensões? Pelos direitos adquiridos pelos trabalhadores, consagrados no pagamento dessa fracção diferida no tempo do salário ganho ao longo da vida? Ou… pelos cortes que a “regra do equilíbrio orçamental” ditar?

Combinemos este curioso apelo de Marcelo ao consenso com três outras declarações suas, feitas em ocasiões (cuidadosamente?) separadas, mas bem aproximadas no tempo:

  • No dia seguinte, 1 de Junho, segundo noticiava a edição em linha do Expresso do mesmo dia, em discurso feito na Base Aérea de Sintra, o Presidente “não tem dúvidas quanto ao rumo de Portugal: ter um défice abaixo de 3%. Este foi o compromisso assumido com a União Europeia, que o “Governo vai necessariamente cumprir“. É a resposta de Marcelo às perguntas feitas mais acima: o lado para que há-de cair o consenso que ele quer para as políticas públicas de longo prazo é um, um só e sempre o mesmo: o lado da “regra do equilíbrio orçamental”, vigiado com mão de ferro pelas instituições da UE. Curiosamente, dois meses antes, um dirigente do PSD, Nuno Morais Sarmento, notara, no programa “Falar Claro” da Rádio Renascença (29 de Março de 2016), a propósito das declarações de Marcelo ao promulgar o orçamento do governo de António Costa, que o “Presidente da República virou polícia-árbitro da execução orçamental”. Facto presidencial inédito: o Presidente feito polícia e árbitro da execução orçamental do governo Costa… É o segundo anel do abraço a fechar-se.
  • Ligando os dois discursos, note-se esta linguagem: “compromisso de longo prazo” para “cumprir o compromisso com a União Europeia”, que “o governo vai necessariamente cumprir”. Esta linguagem sugere ensurdecedoramente o objectivo de consagração constitucional da famosa “regra de ouro”, ou seja das obrigações fixadas no chamado tratado orçamental da UE, a mais falada das quais é a da limitação do défice orçamental a um máximo de 3% do PIB.
  • Ainda mais curiosamente, já em 2013 o então vice-primeiro-ministro Paulo Portas lançara um apelo ao PS para um compromisso constitucional a médio prazo que permitisse “inscrever a “regra de ouro” do limite do défice na Lei fundamental e emagrecer o Estado. (…) O vice-primeiro-ministro está convencido de que a Espanha, ao colocar a regra de ouro na Constituição, conseguiu evitar um programa externo de assistência financeira.” (“Público” em linha, de 30 de Outubro de 2013, artigo de Maria Lopes e Sofia Rodrigues). Sabe-se que em Portugal, esta regra de ouro tem consagração legal — mas não constitucional — numa “Lei de Enquadramento Orçamental”, que, enquanto tal, é (horror dos horrores) susceptível de revogação pela maioria parlamentar eleita — eleita, imagine-se, pelo povo.
  • Três dias depois, no sábado, 4 de Junho, Marcelo continua a urdir a sua calorosa, consensual manta. Falando no final de uma visita à Feira Nacional da Agricultura, em Santarém, declarou: “Os consensos são consensos, portanto são à direita e à esquerda. Não há consensos só à direita e só à esquerda. O ideal era que em grandes questões nacionais houvesse consensos muito largos, envolvendo direita e esquerda” (Observador, 4/6/2016). Não hesite, portanto, António Costa, apesar do seu governo de “consenso à esquerda”, em procurar também consensos “à direita” (já o fez, recordemos, para carregar a falência do Banif aos contribuintes). Sugerirá isto que a política do governo de António Costa penderá inevitavelmente para o lado do consenso que Marcelo lhe vem explicando, à medida que os “termos do dilema” das “políticas públicas” se forem clarificando?
  •  Entre a Base Aérea de Sintra e a Feira de Santarém, Marcelo deslocou-se, no dia 2 de Junho, à Alemanha. Ali, deu uma entrevista ao jornal “Die Welt”, em que rematou uma malha importante da sua obra de esclarecimento não só dos seus ouvintes em Portugal, mas também dos seus patronos além-fronteiras:

Até agora, [o governo do Partido Socialista e os seus apoios parlamentares, Partido Comunista e Bloco de Esquerda] têm aceitado a realidade. Ambos os partidos têm sérias dúvidas quanto à NATO e tinham uma atitude crítica para com a União Europeia, eram muito críticos em relação ao mecanismo do défice. Mas o compromisso dos militantes e a vontade de apoiar o governo foram até agora mais fortes do que os ideais. Faz já seis meses que tem funcionado assim.” 

O entrevistador alemão releva o óbvio problema de que “Resta, mesmo assim, um conflito de fundo. O seu primeiro-ministro, A. Costa, está convencido de que “a austeridade não gera bem-estar”. Ora, a política da União Europeia não mudou, continua a ser uma política de austeridade”. 

Réplica resoluta de Marcelo: “Sim, mas o programa que ele está a executar não se afasta assim tanto do que o anterior governo conservador fez. Porque a realidade é o que é.” (“Die Welt” em linha, 2/6/2016, tradução nossa).

Como esta página do grupo “A Internacional” tem registado, a “realidade”, vista pelo prisma do “respeito pelos compromissos internacionais e europeus do país” é, de facto, “o que é”. 

E o que ela é, é, por exemplo, isto: ao querer diluir a promessa de regresso às 35 horas semanais, o governo afronta os trabalhadores da função pública. O sindicato dos enfermeiros anunciou-se, naturalmente, “disponível para a greve”, quando notou a intenção do ministro das finanças de fazer os enfermeiros compensarem com folgas e férias o facto de terem de continuar a trabalhar as mesmas horas semanais que antes, em vez das 35 horas. Como notou a bastonária da ordem em carta ao ministro (“Público” de 1 de Junho, artigo de Raquel Martins), a proposta do ministro das finanças só seria exequível “se também se mandassem os doentes de folga e férias”. 

Na realidade da “política pública” tal qual ela é, o ministro das finanças diz, pois, o mesmo que Marcelo diz: o lado que conta é o lado da regra do défice orçamental, a que o obriga a norma de respeito pelos compromissos internacionais do programa de governo. O lado que não conta é o do direito dos enfermeiros à restauração das 35 horas e do direito dos doentes a cuidados de enfermagem, a que o deveria obrigar a norma do respeito pela vontade do povo que o elegeu (além de as 35 horas também estarem no programa do governo). 

E o que diz o chefe do ministro das finanças, António Costa? E o que dizem o BE e o PCP?

Marcelo, é certo e sabido, continuará aos abraços. Abraços cada vez mais apertados.

AZ, 5 de Junho de 2016