“Senão teríamos cá a Troika outra vez!?”
Esta é a meia pergunta, meia resposta que faz ou dá a si próprio este e aquele camarada e amigo do PCP ou do Bloco de Esquerda com quem discutimos. Alarmado, é certo, pelo caminho que as coisas levam sob o governo Costa/UE. Incomodado, cada vez mais, com a cobertura que a direcção do seu partido dá a políticas que cada vez menos diferem das do governo anterior.
Porém, diz esse amigo, — agora que já terminou, embora, o tempo das magras e parciais reposições e reversões, de (mal) voltar a como os trabalhadores estavam há dez anos, só que com impostos e preços mais altos, sem contratação colectiva, com precariedade multiplicada e fulminante desinvestimento público — diz ele: sim, será verdade, mas “senão, não teríamos cá a troika outra vez!?”
Perdoem-nos outra pergunta: acaso a troika de cá saiu? Nunca saiu(1). Fora dos títulos dos jornais, Portugal continua sob vigilância da troika. São afinal esses os “compromissos internacionais do país”. Como funciona, por exemplo, o orçamento, suposto magno documento da soberania do Estado português?
1) O governo submete à Comissão Europeia o plano de “estabilidade e crescimento”, com os valores previstos para orçamentos e seus saldos até 2021. 2) A Comissão manda correcções. Lema: é preciso mais “reformas”. 3) A seguir, “negociações” com os parceiros na Assembleia da República, para a galeria. 4) Os parceiros aceitam mais ou menos tudo, pois 5) “senão, teríamos cá a troika outra vez!” 6) Por fim, voto solene na AR: PS, BE, PCP votam a favor. PSD e CDS, contra. Para a galeria. E a troika: cá.
Momento-chave: o parecer da Comissão. Ela agora elogia, claro. Ou não mandatasse o tal plano de estabilidade e “crescimento” mais quatro anos de austeridade extrema, até 2021 (ver nº 4 d’“O Trabalho”). O plano manda cortar 10% à despesa pública actual. O FMI? Também elogia, claro.
Deixando de fora o votarem contra na AR, para a galeria, até os chefes do PSD e CDS mudaram de discurso: dizem que o governo está a fazer exactamente o que eles fariam se os tivessem deixado formar governo, agora que “a crise (graças a eles) já passou”.
A verdade é esta: o essencial da política do actual governo é a política da troika para Portugal.
Surpreende-se o amigo do BE, do PCP? Mas não há surpresa. A frase principal dos acordos parlamentares do governo com o BE, como com o PCP, é a que diz que o governo “honrará os compromissos externos do país”. Portanto: pagará a dívida externa, que é controlada pela banca, pelo BCE, pelo FMI e pelo Estado alemão e francês. Honrará os tratados de Maastricht e de Lisboa, que ditam o défice orçamental, a redução da despesa pública e o primado da concorrência “livre de entraves”. Honrará os compromissos militares com a NATO. A isso tudo o resto se há-de subordinar.
Como a “competitividade” da indústria portuguesa se baseia em salários de miséria, o governo, apesar de ter a fama de tudo “reverter”, não reverte nem revoga a legislação anti-laboral de Passos/Portas/Troika. Sobretudo, não desbloqueia a contratação colectiva. Aumentos salariais destruiriam “a nossa competitividade”. A nossa? Só se for a mesma competitividade do “nosso” eucalipto inflamável.
Lembram-se que o patronato nem se importou muito que o salário mínimo aumentasse(2)? Na condição de o governo assumir o compromisso de não mexer na legislação laboral nem fazer mais reversões? Diligente, o governo até tentou que a Segurança Social, via TSU, pagasse o aumento do salário mínimo.
O governo nunca escondeu que, na dúvida, está do lado da UE e do patronato. Querem os sindicatos negociar com o governo medidas favoráveis aos trabalhadores? O governo remete-os para a concertação social. Ali, o patronato veta tudo o que não lhe dá jeito.
A reversão de umas poucas medidas tem, assim, cumprido uma função principal: ter mão no movimento sindical.
Diz Bobone, o patrão do Comércio:
“O envolvimento das forças políticas que não faziam parte do “arco da governação” trouxe-nos paz social” (3)
A questão que o amigo do PCP ou do BE levanta no título deste artigo levanta, assim, uma outra questão, mais fundamental: será possível uma política de esquerda, uma política de medidas favoráveis aos trabalhadores, no quadro da União Europeia?
António Costa dizia que sim, que era possível “fazer de outra maneira”, diferente de Passos e Portas. Sem mais austeridade, sem cortes nos salários e pensões, aplicar a mesma política de Bruxelas, cumprir as mesmas metas do défice, fazer as mesmas “reformas estruturais”.
Duas coisas são certas: o governo repôs (em parte) salários e pensões — ao nível de há dez anos. E A. Costa comprometeu o BE e o PCP com as políticas da UE de redução do défice pela austeridade e com as guerras da NATO. E parece que “calou” e “amoleceu” as cúpulas sindicais.
A habilidade foi esta: em vez de cortar directamente nos nossos salários e pensões, este governo cortou à facada, sobretudo, na componente colectiva do nosso salário. No ensino público, na saúde, nos transportes públicos, em todo o investimento público.
E que acontece de cada vez que o BE ou o PCP anunciam querer negociar com o governo de Costa/UE alguma medida favorável aos trabalhadores? Esbarra-se no défice. Na pior das hipóteses, vai-se a votos. Aí, o “bloco central” renasce e mata a iniciativa. BE e PCP perdem a votação e dizem: pois, é pena, mas realmente a gente só acordou com o governo certas coisas; nas outras, cada um faz o que entende. Azar o nosso.
Assim, na prática, o governo tem uma coligação com o PSD e o CDS para as medidas mais escandalosamente anti-trabalhadores; e uma coligação com o PCP e o BE para fazer aprovar as (já acabadas) reposições parciais e, sobretudo, passar as medidas “globais” que a UE manda: em primeiro lugar, os orçamentos de austeridade. Dava mau aspecto a direita aprovar. Agora é a vez de ser ela a fazer de “oposição”.
Para dizer a verdade, nós nunca achámos que o BE e o PCP fossem muito claros nas suas posições críticas sobre a União Europeia, o euro e a NATO. Mas o que é certo é que, pelo menos, punham claras reservas à UE e ao euro e opunham-se “robustamente” à NATO.
Agora, na prática, é graças a eles que UE, euro e NATO continuam a mandar em Portugal. O governo honra os “compromissos internacionais”. BE e PCP honram o compromisso com o governo. Engolem tudo: paga-se a dívida dos banqueiros; vende-se o Novo Banco à piratagem financeira americana; paralisa-se a contratação colectiva, individualizando-a empresa a empresa; enfraquecem-se sindicatos e trabalhadores; baixam-se salários reais; mantém-se a precariedade sem fim. E a Comissão ainda manda fazer mais “reformas estruturais”: liberalizar mais os despedimentos, impor a TSU generalizada e acabar com o desconto patronal para a Segurança Social.
Pode haver outra política? Pode. Quem a pode impor? Só os trabalhadores unidos, mobilizados e determinados, com as suas organizações, sindicatos e comissões de trabalhadores, chamando à responsabilidade os partidos que dizem falar em seu nome.
Ora bem: para que isso seja possível, é preciso uma política clara de ruptura com a UE e com o euro. É preciso dizer não aos tratados e medidas da UE, a começar pelo Tratado Orçamental e pelo PEC, que impõem transformar o défice do Orçamento em superavit de 5% do PIB até 2021. BE, PCP e PS ataram-se de pés e mãos a esses tratados, à política da UE, da Troika, de Costa. É tempo de se desatarem.
Esta situação merece ser discutida. A UE merece ser discutida. O futuro do movimento operário em Portugal merece ser discutido. Discutamo-lo juntos.
Notas
(1) Leia-se, por exemplo, o que já em 2014 escrevia o site “dinheiro vivo”: “As missões dos credores oficiais (fundos europeus, Comissão Europeia e FMI) virão duas vezes por ano a Portugal para fazer “vigilância reforçada” até 2038, dizem as novas regras das instituições. (…) A conclusão em junho do programa de ajustamento não se traduzirá em total soberania (…). Pelo contrário, o pós-troika será marcado por alta vigilância e o país será visado por missões técnicas da parte dos credores oficiais. Em vez de serem trimestrais, serão semestrais.”
(2) Por exemplo, pela voz de António Saraiva, presidente da CIP (2/10/16, Antena 1).
(3) Site “dinheiro vivo”, 8/7/2017: “Estamos a viver um tempo como há muito não vivíamos: crescimento económico, mais emprego, motivação. São vários os fatores que contribuíram (…) e o primeiro foi, sem dúvida, o esforço de contenção que realizámos durante os quatro anos do governo anterior (…) Em terceiro lugar, o envolvimento das forças políticas que não faziam parte do “arco da governação” trouxe-nos paz social, o que permitiu criar condições para que se tomem decisões essenciais ao desenvolvimento.”