Contrariando sondagens e expectativas do mundo político e da imprensa, a população trabalhadora foi às urnas, no dia 30 de Janeiro, para barrar o caminho ao regresso ao governo dos partidos da reacção negra, da troika, da miséria e da fome. A abstenção, embora mantendo-se elevadíssima, baixou um pouco.
Lembremos: após seis anos de ‘geringonça’, um quarto da população, e um terço dos trabalhadores, são pobres, apesar de labutarem de sol a sol, às vezes em vários empregos. O nível das reformas de uma população envelhecida é miserável. A juventude é expulsa das grandes cidades, não pode pagar casa, antevê um futuro pior do que o dos pais e não tem meios para ter filhos. Muitos, que a escola pública qualificou, têm de emigrar. Fecham-se indústrias e despedem-se trabalhadores em nome do “clima” e do “digital”. A pandemia foi pretexto para mandar o exército contra grevistas, declarar estados de emergência e outras medidas autoritárias e dar milhões a ganhar ao grande capital. Entretanto, deixa-se o SNS a degradar-se a olhos vistos, enquanto o negócio da saúde privada se incrusta e o parasita.
Ainda assim, milhões de trabalhadores foram às urnas para derrotar a reacção. Concentraram o voto no PS, que obteve uma das suas maiores votações das últimas décadas (2.250.000 votos) e uma maioria absoluta dos assentos na Assembleia da República.
1. A concentração de votos no PS não foi um voto de confiança na política da direcção do PS – que o reconheceu. António Costa já abandonara a esperança na maioria absoluta. Ninguém ficou mais surpreendido do que ele com a dimensão da “sua” vitória.
2. Uma semana antes da votação, as sondagens davam a vitória à direita, que se entusiasmou, proclamando: destruiremos o SNS, o salário mínimo, o ensino público, aumentaremos os lucros, baixaremos os salários, devastaremos o que sobra das conquistas de Abril. Grande parte do povo trabalhador sabe que só as conquistas de Abril o separam ainda da miséria absoluta.
3. Para esses milhões de trabalhadores, desiludidos com os seus partidos, muitos deles nem ir votar tencionavam, foi um sobressalto; e, num reflexo de resistência de classe, a que era possível no limitado terreno eleitoral, foram votar contra a reacção negra.
4. O resultado eleitoral agravou a profunda crise política da burguesia portuguesa, Os partidos directamente financiados pelo grande capital, PSD, CDS, IL e Chega, embora aumentando um pouco o seu número total de votos, ficaram a meio milhão de votos dos partidos que colhem o voto dos trabalhadores portugueses. Mesmo o partido folclórico-fascista Chega perdeu mais de cem mil votos para o resultado que o seu caudilho conseguira nas presidenciais. Quase cinquenta anos após a revolução de 1974, o capital continua incapaz de governar sem ter de pedir ajuda às direcções dos partidos que representam o voto do trabalho.
5. A concentração de votos no PS fez-se, em parte, à custa do PCP e, sobretudo, do Bloco de Esquerda. Este perdeu metade dos votos e três quartos da bancada parlamentar. Ora, as direcções do BE e do PCP concentram quase todos os seus esforços, declaradamente, nas eleições e no parlamento. Os resultados das eleições foram, pois, profundas derrotas políticas para ambas.
6. As razões são fáceis de encontrar. Um exemplo: no 1º tempo de antena do BE, a sua coordenadora denunciava (bem) a recusa do governo em reverter a legislação laboral Passos/troika, que Costa todavia rejeitara no passado. A coordenadora fazia a pergunta pertinente: “Mas porque mudou [A. Costa] de opinião e é hoje o guardião dessas regras injustas que a troika cá deixou?” Todos conhecemos a resposta: mudou, porque, uma vez no governo, responde em primeiro lugar perante a União Europeia. Os acordos da “geringonça”, donde saiu o governo que chefiava, tinham como ponto cardeal o respeito pelos tratados europeus. Ora, as leis laborais da troika nasceram directamente dos critérios, tratados, regras e instituições da União Europeia. E esta reflecte os interesses dos “mercados” e do capital financeiro internacional e nacional. Por isso “mudou” Costa.
7. Mas a coordenadora não respondeu com essa verdade óbvia. Respondeu com confusas queixas da “intransigência” de Costa, que quereria provocar uma crise política para ter mais votos, “maioria absoluta”… Porque será que a cúpula do BE não deu a resposta óbvia e de todos conhecida? Porque, se desse, ficaria a nu a sua política de colaboração de classes, que a fez votar cinco orçamentos e meio de austeridade e de congelamento de salários às ordens de Bruxelas e viabilizar políticas de milhares de milhões para banca e patrões (votadas pelo PS com PSD e CDS) e migalhas para quem trabalha (votadas pelo PS com BE e PCP). Alguém falou, na campanha eleitoral, da UE e da ‘bazuca’? Ninguém. Ou dos preparativos de guerra dos EUA e UE na Ucrânia, potencialmente a pior crise na Europa desde a 2ª guerra? Ninguém. BE e PCP sacrificaram a verdade ao empenho total num novo acordo com o PS – enquanto Costa dizia abertamente que governaria, de novo, sob a égide de Marcelo e de Bruxelas.
8. Leia-se o que um jornalista do Público escreveu do que há a esperar do novo governo: “Para já, o que se sabe é que no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ficou estabelecida com Bruxelas a passagem à prática de uma série de medidas, que têm de ser cumpridas para que os fundos continuem a chegar a Portugal. O PRR será, tal como está definido, um autêntico guia para aquilo que o Governo irá fazer tanto ao nível do investimento como das reformas.” (2/2/22). É e era óbvio, mas o que as direcções do Bloco e do PCP fizeram foi apelar aos eleitores para… que “impedissem a maioria absoluta da PS” e lhes dessem o 3º lugar da classificação geral… para fazerem um acordo com a direcção do PS!
9. Esta cegueira voluntária parece manter-se. Um comentador do Expresso, pessoa muito influente junto da direcção do BE, escrevia (4/2/22): “A vitória do PS é o que é, esmagadora. Vai governar quatro anos sem obstáculo.” Mas os governos PS/Marcelo/UE já governaram durante seis anos “sem obstáculo”: coligados ora à esquerda, com BE e PCP, para as coisas miúdas e para aprovar os orçamentos de austeridade, ora à direita, com PSD, CDS, IL e Chega, para dar graúdos milhares de milhões à banca e ao negócio privado.
Mesmo assim, esses governos enfrentaram obstáculos sérios de outra natureza: a resistência de professores, enfermeiros, motoristas, estivadores, maquinistas, às políticas de destruição das suas condições de vida e de trabalho – resistência coarctada, embora, pela colaboração dos aparelhos partidários com o governo.
10. A direcção do PS tenciona continuar a governar segundo as indicações e instruções da União Europeia. Tenciona manter a legislação laboral da troika. Quer “dar” aos funcionários públicos – que perderam 20% de poder de compra nos últimos doze anos – 0,9%, enquanto a inflação dispara. Prepara-se para, via PRR/bazuca, dar milhares de milhões em subvenções e adjudicações às empresas do PSI-20, as mesmas que prometem despedir mais de um milhão de trabalhadores nos próximos anos, conforme anunciaram no seu Business Roundtable Portugal.
Mas os obstáculos que governos enfeudados ao capital financeiro e à União Europeia mais temem não são parlamentares. Enfermeiros, motoristas, estivadores, maquinistas, revisores, marinheiros, professores, carteiros, operários da GALP, da TAP, da Groundforce, da Altice, da Efacec, da Auto-Europa, da Stellantis, bancários, precários da saúde e de todos os sectores, todos aqueles contra quem se preparam despedimentos e precarização em larga escala, esses irão ser, de certeza, um “obstáculo” aos ataques que contra eles estão a ser perpetrados ou preparados às ordens da UE e do capital.
11. Os militantes sindicais do PS, o Bloco de Esquerda e o PCP também se deviam empenhar em ajudar a montar, ao lado desses muitos milhares de trabalhadores, um obstáculo, forte e combativo, às medidas que se preparam: erguer a resistência unida e solidária para vencer as batalhas que se avizinham. Nas empresas, hospitais, escolas, na função pública. Nos sindicatos, nas comissões de trabalhadores. E, também, decerto, usando as possibilidades dadas pela tribuna parlamentar.
12. Porque nenhuma tarefa será mais importante, nos próximos meses e anos, do que a organização da resistência unida à devastação que o capital, a União Europeia, o Presidente da República e o governo ao seu serviço preparam a coberto dos planos de “transição verde” e de “transição digital” da UE.
Apoiemo-nos, pois, na mobilização eleitoral de massas que travou a reacção negra para criar a unidade de todos os trabalhadores, com os seus sindicatos e comissões de trabalhadores, para conseguir
– o aumento geral dos salários e a escala móvel dos salários contra a inflação;
– a reversão integral das leis laborais da troika: caducidade, tratamento mais favorável, etc.;
– um plano de investimentos massivos no SNS, no ensino público e na habitação;
– a reversão das privatizações de empresas estratégicas e expropriação sem indemnização de todos os bancos que receberam milhares de milhões do erário público,
– a ruptura com a escravatura da dívida, dos critérios de Maastricht e do Banco Central Europeu,
– a unidade de todos os trabalhadores europeus para contrapor a esta União Europeia do capital uma Europa dos trabalhadores.
Na certeza de que só um governo dos trabalhadores, controlado pelas suas organizações de classe, rompendo com a dependência da União Europeia, poderá satisfazer as reivindicações da classe trabalhadora. E de que esse caminho requer partidos dos trabalhadores ciosos da sua independência absoluta do Estado e do patronato e que prestem contas exclusivamente à sua própria classe.