Entrevista com o activista palestiniano Naji El Khatib

REFLEXÕES SOBRE A SITUAÇÃO NA PALESTINA
DESDE 7 DE OUTUBRO DE 2023

Quatro meses depois do 7 de Outubro de 2023, publicamos a entrevista que nos deu Naji El Khatib, activista palestiniano da Iniciativa por um Estado Democrático Uno(1). Sem concordar necessariamente com tudo o que ele diz, acreditamos que este ponto de vista merece ser conhecido por todos os trabalhadores, activistas e jovens solidários com o povo palestiniano e a sua luta contra o imperialismo.

Quatro meses após o 7 de Outubro de 2023, como descreverias o estado de espírito dos palestinianos?

No dia 7 de Outubro, eu, como muitos activistas palestinianos, referi que só podíamos reafirmar que o principal objectivo da luta do povo palestiniano nunca é matar, mas, sempre, alcançar uma solução política que garanta o respeito por todas as vidas humanas, sem distinção, sejam elas de judeus israelitas, sejam de palestinianos.
Não obstante, todos os observadores reconhecem que a grande maioria do nosso povo vê no 7 de Outubro uma expressão da resistência, apesar da disparidade de meios entre os dois lados, resistência essa que prossegue apesar de todos os horrores. A palavra ‘
sommod‘, de difícil tradução (firmeza, resiliência, persistência), assumiu muitas facetas: em Gaza, face à guerra de aniquilação e genocídio da população civil; na Cisjordânia, face aos ataques dos colonos extremistas e aos violentíssimos ataques do exército [israelita] aos campos de refugiados; e, no interior das fronteiras de 1948 (entre os palestinianos naturalizados israelitas), face à ascensão do fascismo sionista em todas as suas expressões, institucionais e sociais.
Na diáspora palestiniana, prevalece, face à guerra de extermínio, um sentimento de raiva contra os países ocidentais em que vivem e cujas posições em prol da política criminosa do Estado de Israel não se conseguem inflectir. Uma espécie de sentimento de impotência perante o massacre.

Biden, Macron e outros aparecem outra vez com a “solução de dois Estados”: porquê?

Há trinta anos que a “solução de dois Estados” é um logro utilizado para organizar a gestão da ocupação e da colonização. Assim, durante esses trinta anos, o número de colonatos aumentou exponencialmente, e o número de colonos na Cisjordânia passou de 160 mil para cerca de um milhão graças à mentira da “solução de dois Estados”.
Aos olhos de muitos palestinianos, o 7 de Outubro dificultou a tarefa de quem quer suprimir a questão nacional palestiniana. Tarefa encetada, nos últimos anos, com a cumplicidade da “
Autoridade Palestiniana” e dos regimes árabes aliados de Israel e dos imperialismos ocidentais.
Todos os que agora vêm outra vez com a pretensa “
solução de dois Estados” estão a tentar proteger os seus próprios interesses. A Autoridade dita Palestiniana quer recuperar um papel há muito perdido. Os Estados do Golfo, melhorar as condições para a “normalização” das suas relações com Israel. E o imperialismo americano, atenuar os efeitos negativos para a sua imagem, prejudicada pelo seu apoio militar directo e incondicional ao ataque de Israel a Gaza.
Depois do 7 de Outubro, o imperialismo vê-se, apesar da sua arrogância, obrigado a tomar em consideração a questão palestiniana, porque o povo palestiniano não deixou de resistir. É por isso que tanto a declaração de Cameron de 31 de Janeiro, sobre a necessidade de criar “
um Estado palestiniano“, como a declaração de Blinken do mesmo dia a encarregar o Departamento de Estado dos EUA de estudar a ideia remetem para o contexto político pós-7 de Outubro. Seja como for, um tal “Estado“, sem soberania, desmilitarizado e sob controlo da segurança israelita, mostra que a “solução de dois Estados” continua a não passar da criação de um “bantustão” palestiniano, para liquidar a causa palestiniana de uma vez por todas.

Qual é a tua análise do que se passa na sociedade israelita, à beira da explosão?

No que diz respeito à rápida evolução da sociedade israelita para a extrema-direita, fascista e racista, à vista e com o conhecimento do mundo inteiro, cabe citar a análise feita pelo académico e historiador israelita Ilan Pappé num colóquio recente que ele deu em Haifa, no qual referiu indicadores do que ele considera ser “o princípio do fim do projeto sionista“.
O primeiro indicador é “
a guerra civil a que todos assistimos, antes de 7 de Outubro, entre o campo laico e o campo religioso na comunidade judaica de Israel“. Na opinião dele, “esta guerra vai-se repetir… O que une os dois campos é a ameaça de segurança, e não me parece que isso vá funcionar daqui para a frente“. O segundo indicador é “o apoio sem precedentes à causa palestiniana em todo o mundo, juntamente com uma vontade de adoptar o modelo anti-apartheid que ajudou a derrubar este regime na África do Sul“. O terceiro indicador é o factor económico, motivado pelo “elevado fosso entre os que tudo têm e os que nada têm, além de uma visão sombria do futuro da solidez económica do Estado de Israel“. O quarto indicador resume-se à “incapacidade do exército para proteger a comunidade judaica no Sul e no Norte… O que será fonte de mais ansiedade e medo entre os israelitas“. O quinto indicador ressalta da “posição da nova geração de judeus, inclusive nos Estados Unidos, que contrasta com a das gerações anteriores que, embora criticando Israel, achavam que o país era uma garantia contra um novo Holocausto ou vagas de anti-semitismo“.
Creio que convém relativizar esta visão optimista, pois o número de israelitas que trocam definitivamente a ideologia sionista por uma opção democrática e laica continua a ser modesto, ainda que em constante progressão. Isto, num contexto em que a fortaleza do capitalismo que Israel é ainda mantém alguns pontos fortes: o seu sistema político e económico, as suas capacidades tecnológicas e militares e, sobretudo, a garantia de segurança face ao povo palestiniano que as grandes potências imperialistas lhe dão. O rápido destacamento da frota americana para a região ilustra o lugar e o estatuto do Estado de Israel como principal colónia do imperialismo no Médio Oriente.

Confirmas a raiva do povo de Gaza contra todos os regimes árabes que o abandonaram?

Expor o povo palestiniano de Gaza aos piores massacres a fim de o aniquilar e destruir o seu ambiente, as suas casas e as suas infra-estruturas equivale a puni-lo colectivamente por não desistir da resistência para alcançar as suas reivindicações históricas: o direito de regresso e a libertação nacional. Convém lembrar que a maioria da população da Faixa de Gaza é composta por refugiados expulsos das suas casas quando da criação do Estado de Israel, em 1948.
Os habitantes de Gaza pensavam que os resultados catastróficos da guerra genocida suscitariam uma reacção e solidariedade do mundo árabe e islâmico… esquecendo, infelizmente, que esse mundo é governado por elites corruptas e antidemocráticas, que reprimem e massacram o seu próprio povo, como Israel o povo palestiniano. No entanto, o povo de Gaza sabe que os povos da região estão com ele, ainda que não o possam exprimir, dada a dureza da repressão política praticada pelos regimes árabes contra qualquer manifestação de solidariedade para com os palestinianos.

E as relações do Hamas com o Irão e os seus aliados?

O Hamas, que historicamente provém da Irmandade Muçulmana (sunita), nunca foi um dos aliados “naturais” do Irão, como o Hezbollah libanês, os Houthis no Iémen ou as milícias xiitas no Iraque e na Síria. A relação entre o Hamas e o Irão não é uma relação ideológica ou confessional, mas sim uma aliança política, que se pode reforçar ou dissover. Quando o Hamas rejeitou o ditame iraniano de que era necessário estar do lado do regime sírio, aliado do Irão, este rompeu relações com o Hamas durante muito tempo.
O Hamas, que procura apresentar-se como um movimento de libertação nacional e tomar o lugar da Fatah na história da Palestina, sabe que o discurso do Irão e aliados sobre a “
libertação de Jerusalém” se destina a “consumo interno” e a reforçar as posições das potências xiitas, nada tendo que ver com as preocupações palestinianas.

E a direcção palestiniana tradicional: a Fatah (partido de Yasser Arafat e Mahmoud Abbas) e outras correntes da Organização de Libertação da Palestina (OLP), incluindo as de “esquerda”?

A Fatah tornou-se uma organização velha e sem credibilidade, incapaz de ir para a frente com os seus dirigentes e de dar posições de chefia aos seus jovens. Um grupo de combatentes do passado transformados em funcionários burocráticos. A Fatah abandonou voluntariamente a direcção da luta nacional ao fundir-se com a chamada “Autoridade” dita palestiniana [instituição nascida dos acordos de Oslo de 1993, que serve essencialmente para “garantir” a segurança de Israel – nota do editor]. Alguns dos seus dirigentes ainda continuam, sem resultado, a tentar recuperar as glórias passadas da organização. A OLP, integrada nessas instituições da mesma forma que a Fatah e a maior parte da esquerda palestiniana, perdeu toda a legitimidade de representante de todos os palestinianos. Por isso o Hamas tenta ocupar a posição de herdeiro da causa nacional que aquelas organizações envelhecidas abandonaram.

Como interpretas o documento “A nossa narrativa” que o Hamas acaba de publicar, dando a “sua” versão do 7 de Outubro?

Com este documento, publicado a 21 de Janeiro, o Hamas – cujo congresso de 2017 aceitara a ideia de um “Estado” na Cisjordânia e em Gaza, portanto, na prática, lado a lado com Israel – apresenta-se como interlocutor-chave nas negociações para uma “solução política” já iniciadas com o imperialismo e Israel. Por isso faz suas algumas posições tradicionais do movimento de libertação nacional.
Há muitas novidades neste documento. Num estilo pouco habitual, apresenta explicações e faz uma autocrítica em relação a certos aspectos do 7 de Outubro.
A outra novidade reside no relato histórico do conflito, que reata com a linguagem habitualmente usada nos escritos políticos palestinianos. Não há vestígios de narrativa religiosa. O documento apresenta uma síntese do surgimento da questão palestiniana, começando no início da colonização sionista na Palestina, passando pela
Nakba (1948) e até à ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza (1967), à apetência de Israel pela colonização, à confiscação de terras, ao apartheid, à violação dos lugares sagrados, à opressão, às detenções e ao cerco de Gaza.
Outra indicação importante: a repetição, por dez vezes, das palavras “
civis israelitas“, a ênfase posta na necessidade de “evitar tomar civis como alvos“. É uma mudança importante em comparação com as acções militares do Hamas durante a segunda Intifada.
Último ponto que é importante mencionar, por ser uma mudança positiva. A afirmação, feita por seis vezes, de que “
o conflito com o projeto sionista não é um conflito com os judeus por causa da sua religião, não é uma luta contra os judeus porque são judeus. É um conflito contra os sionistas porque são colonizadores que atacam o nosso povo e ocupam a nossa terra“.

Que eco têm os defensores, como tu, da solução democrática – um Estado palestiniano uno, laico e democrático no território da Palestina histórica?

A brutal guerra de extermínio em Gaza gerou duas posições contraditórias na opinião pública palestiniana, tanto na Palestina histórica como na diáspora. Por um lado, este genocídio mostrou mais uma vez que o extermínio era política oficial do Estado sionista, com a participação directa do imperialismo americano, tornando-se, por conseguinte, necessária uma solução radical e tornando a proposta palestiniana de “um Estado palestiniano uno, democrático e laico” numa alternativa viável e convincente. Temos verificado que o programa político do nosso grupo One Democratic State Initiative (ODSI) ganha audiência. O número de pessoas que nos contactam não pára de aumentar.
Por outro lado, perante os horrores cometidos em Gaza, há, infelizmente, manifestações de retraimento identitário, de crispação e recusa do outro, visto apenas como inimigo. Há, também, um reforço de todos os meios reaccionários que amalgamam a cumplicidade dos imperialismos americano e europeus, a cumplicidade deles com os sionistas, e todos os valores da democracia e da modernidade, considerados ferramentas ao serviço do campo israelo-americano. Esta evolução negativa vai complicar o nosso esforço de luta por um Estado democrático e secular na Palestina.

Que relação há entre a questão nacional e as aspirações sociais dos operários e dos camponeses?

É um facto que a destruição, deslocação e desenraizamento da sociedade palestiniana da sua terra (povo maioritariamente camponês) fizeram com que as massas de refugiados vivessem sem terras para cultivar, transformando-as em mão de obra barata, sazonal, para os sectores produtivos dos países de asilo, sem direitos nem protecção. Em resumo, um povo deslocado a viver à margem das sociedades de acolhimento, sem recursos necessários para formar os seus próprios sindicatos. A primeira Nakba, de 1948, continua; passámos a falar de uma Nakba permanente… Nestas condições de genocídio, é difícil falar hoje de unidade dos trabalhadores palestinianos e, portanto, de um partido que represente a classe trabalhadora.

As “Teses para a Assembleia Constituinte Palestiniana” (2) poderão ajudar a reagrupar uma vanguarda?

As teses sobre a Assembleia Constituinte Palestiniana adoptadas na conferência internacional do CORQI (Novembro de 2023) podem representar uma alavanca para fazer surgir uma verdadeira vanguarda palestiniana. No entanto, a adesão às teses está relacionada com o grau de desenvolvimento do programa político do Estado democrático único, de modo que este se torne em elemento central da cena política palestiniana. Por outras palavras, quando o movimento por um Estado único se transformar num verdadeiro movimento popular, com peso nas decisões palestinianas, a luta pela Assembleia Constituinte poderá avançar verdadeiramente. As duas questões estão intimamente ligadas.

(1) O website da ODSI pode ser consultado em www.odsi.co.
(2) Publicado em L’Internationale, n° 32, revista do Comité de Organização para a Reconstituição da Quarta Internacional – CORQI.

Entrevista feita, no dia 3 de Fevereiro, por Dominique Ferré para o nº426 de La Tribune des travailleurs (7 de Fevereiro de 2024)