Palestina: Que Solução Democrática?

Foto: Manifestação árabe e judaica comum contra o genocídio em Haifa, 15 de Março

Debate entre militantes palestinianos e judeus israelitas em Bruxelas, 15 de Março

Fonte: La Tribune des travailleurs, nº 432, 20 de Março de 2024

Cerca de oitenta trabalhadores, jovens, militantes políticos e sindicais da Bélgica, França e Áustria participaram em Bruxelas, na sexta-feira, 15 de Março, no debate organizado pela Maison de la Famille (MdF) subordinado ao tema: “Que Estado democrático na Palestina?”

Após algumas palavras de boas-vindas de Anne Vanesse, Presidente da MdF, usaram da palavra os oradores: Ilan Pappé, académico israelita, autor, entre outras obras, d’A Limpeza Étnica da Palestina, Naji El Khatib, antigo professor da Universidade An-Najah em Nablus e animador da One Democratic State Initiative (Iniciativa por um Estado Democrático Uno na Palestina), Eitan Bronstein-Aparicio, militante israelita e co-director de De-Colonizer, e Suheil Yassin, estudante palestiniano da Universidade de Antuérpia e activista da One Democratic State Initiative.

A introduzir os debates, Dominique Ferré, da redacção de La Tribune des travailleurs, recordou que “nenhuma das “soluções” que os grandes deste mundo há mais de setenta e cinco anos querem impor à Palestina resultou de uma decisão democrática dos habitantes da Palestina. Nem a Resolução 181 da ONU, de 29 de Novembro de 1947, que foi fruto de um acordo de cúpula entre o imperialismo americano e Stalin, que impôs a partição, portanto, a divisão artificial da Palestina numa base étnica e religiosa (…); partição que esteve na origem da Nakba de Maio de 1948 e de todos os dramas que, até hoje, se abatem sobre o povo palestiniano, mas também sobre as populações judaicas; nem os Acordos de Oslo, assinados em Setembro de 1993, no adro da Casa Branca, porque, mais uma vez, era em Washington que se ia decidir o futuro de 20 milhões de habitantes da Palestina”. Por isso, concluiu, “é com orgulho que podemos oferecer uma tribuna aos defensores duma solução democrática na Palestina. É uma tradição que nunca deixou de existir, fosse no movimento de libertação palestiniano, fosse, se bem que em minoria, na população judaica israelita. Disso é prova a tribuna desta conferência.

Das trevas assoma a luz da nova aurora

Ilan Pappé:

Depois de denunciar “a cumplicidade americana, europeia e belga no genocídio”, Ilan Pappé expôs o que considera serem as “fissuras que não param de se abrir no edifício do projecto sionista.” Entre estas, citou a “incapacidade de criar coesão nacional na sociedade judaica israelita. E isto não tem nada que ver com os palestinianos. Na realidade, há em Israel dois Estados: o Estado de Tel Avive e o Estado da Judeia. O Estado da Judeia nasceu nas colónias da Cisjordânia; considera que o Estado judaico tem de ser teocrático e racista e que lhe assistem todos os direitos em relação aos palestinianos. Considera, igualmente, que, historicamente, os judeus israelitas laicos prestaram um bom serviço, mas agora já não servem para nada. O Estado da Judeia considera que deus está do seu lado e não tem precisão de legitimidade internacional (…). São fanáticos messianistas, mas têm muitíssima força. Face a eles, o Estado de Tel Avive é mais laico, mais pluralista, mais democrático, e apoia identicamente o genocídio; é partidário de um apartheid mais liberal. Só que está a perder a batalha em todos os terrenos, eleitoral, económico, político: continua a ser a elite, mas está a ser progressivamente substituído pelo Estado da Judeia (…). A única coisa que, por enquanto, assegura uma coesão entre o Estado da Judeia e o Estado de Tel Avive é terem um inimigo comum. Portanto, para manterem esta unidade, é preciso a guerra, o banho de sangue e a violência.

Outra contradição que mina o Estado de Israel é que, segundo Ilan Pappé, “o fosso (entre os que têm dinheiro e os que não têm ⎼ NdR) em Israel não pára de crescer. Nunca se viu tanta gente no limiar da pobreza, principalmente desde 7 de Outubro. Sem ajuda económica da Europa e dos Estados Unidos, Israel não podia sobreviver.” Realçando ele “o aparecimento de uma jovem geração de palestinianos (…), uma geração ainda por organizar, mas unida por esta visão do Estado uno.

Concluiu assim Ilan Pappé: “Não devemos perder a esperança: das trevas assoma a luz de uma Palestina liberta, democrática, que permita o regresso dos refugiados e em que todos os cidadãos vivam em igualdade. A igualdade que foi negada aos palestinianos logo desde o início do projecto sionista. Acredito sinceramente nesta perspectiva como militante, como universitário e como habitante desta região.

“Saiu-nos cara a ficção dos dois Estados”

Naji El Khatib:

Na sua comunicação, Naji El Khatib fez, designadamente, esta interrogação: “Que lugar resta às palavras, às ideias, aos debates no contexto do genocídio e da barbárie que hoje campeiam em Gaza?

Acreditamos firmemente que a proposta de um Estado democrático uno é a única saída possível para parar com os massacres e com a nova Nakba em Gaza. O nosso grupo, a Iniciativa por um Estado Democrático Uno na Palestina (ODSI), considera-se continuador da herança programática palestiniana iniciada em 1943, quando a Liga de Libertação Nacional abriu a perspectiva de um Estado palestiniano laico e democrático para todos os seus cidadãos, perspectiva que seria confirmada pelo Conselho Nacional Palestiniano de 1968, para quem era esse o objectivo da luta de libertação. Infelizmente, esse programa sofreu a sua primeira desfeita em 1974, quando outro Conselho Palestiniano o substituiu pelo “Programa de Dez Pontos”, também conhecido pela “luta por etapas”, que desistia da perspectiva de uma Palestina democrática e laica; e quando a Organização de Libertação da Palestina (OLP) dessa época aceitou criar um “Estado lado a lado com Israel”, se (dizia ela), tal representasse uma etapa a caminho da realização dos direitos nacionais do povo palestiniano. 1974 acabou, infelizmente, por ir dar aos acordos de Oslo de 1993-1994. Desde então, houve trinta anos de negociações completamente surrealistas, nas quais se passou de 160 mil colonos na Cisjordânia a cerca de 900 mil hoje ⎼ à pala de negociações sem fim. Em 1993, os acordos de Oslo previam que o futuro “Estado palestiniano” se edificasse em 23% dos territórios da Palestina histórica. Hoje, a Autoridade Palestiniana (saída dos acordos de Oslo) reina em apenas 9,2% desses 23% de territórios. Esta ficção da “solução de dois Estados” era uma farsa, que saiu muito cara aos palestinianos. Base do nosso grupo são os três princípios fundadores da consciência nacional palestiniana: libertação, regresso dos refugiados e Estado democrático para todos os habitantes, do rio até ao mar. Um Estado palestiniano laico e democrático, não um Estado “binacional” nem uma “democratização” do Estado de Israel, nem uma confederação palestino-israelita.