As eleições de 10 de Março: Balanço e perpectivas para a classe trabalhadora

O que mostram os números das eleições de 10 de Março?

Nos jornais e televisões, praticamente só se lêem grandes considerações sobre “percentagens” e “números de deputados”.

Ora, o princípio eleitoral é: cada cidadão dispõe de um voto; e todos os votos são iguais[1].

A nossa análise parte, portanto, do número absoluto de votos: quantos eleitores votaram em que partido e como variou essa quantidade desde anteriores eleições.

O número total de votantes foi de 6.140.269 (6.473.789 com o “estrangeiro”). Votaram mais 750 mil eleitores (910 mil, com o “estrangeiro”) do que em 2022; foi o máximo número de votantes desde 2002.

Abstiveram-se 3.130.000 eleitores (4.344.437 com o “estrangeiro”), o número mais baixo deste século (a par de 2005). Em 2022, abstiveram-se uns 3.910.000 (5.250.000 com o “estrangeiro”).

A direita, no seu conjunto teve o máximo número de votos do século XXI: 3.350.000 (3.430.000 com os votos no estrangeiro), aumentando um milhão desde 2022.

É a primeira vez, neste século, que a soma dos votos na direita é superior (por 900 mil votos) à dos votos na “esquerda” (PS, BE, PCP, Livre). Esta teve 2.450.000 votos (2.500.000 com os votos no estrangeiro), perdendo 375 mil votos para 2022. Os partidos “de esquerda” obtiveram, colectivamente, o segundo pior resultado do século. Pior, só em 2011 ⎼ ano em que, mesmo assim, tiveram mais votos do que a direita!

Não considerando resultados no estrangeiro, o PS perdeu 480 mil votos para 2022, mas o seu resultado (1.760.000) foi superior aos de 2015 (!) e 2011.

O BE aumentou ligeiramente do resultado catastrófico de 2022, obtendo 274 mil votos ⎼ ainda assim, o seu segundo pior resultado eleitoral desde 2002, com mais 34 mil votos do que em 2022.

O PC continuou o seu declínio histórico. Teve o pior resultado de sempre (202.325). Perdeu mais cerca de 34 mil votos.

O Livre teve uma subida “espectacular”, de 69 mil para 200 mil votos.

Contudo, os partidos da direita tradicional (PSD e CDS, a “AD”) tiveram apenas um pequeno aumento, + 145.000 votos. Em percentagem, baixaram. Admitindo  Ficaram abaixo de todos os seus resultados este século, com as excepções, por pouca margem, de 2019 e 2022. O Chega teve mais de 1.100.000 votos. Subiu 720 mil em votos no território nacional.

Que conclusões tirar destes resultados?

O aumento da votação nos partidos da direita tradicional, mesmo incluindo a Iniciativa Liberal, foi de apenas 200 mil votos.

A transferência de votos “da esquerda para a direita” parece ter sido mínima, apesar de nove anos de governos do PS, com o apoio, primeiro explícito, depois implícito, do BE e do PCP.

É manifesto, por outro lado, o crescimento do Chega, cuja votação triplicou. O aumento deve-se, essencialmente, a ter conseguido mobilizar uma parte significativa da abstenção tradicional. O voto nos demagogos fascistas transformou em (aparente) rejeição activa o alheamento de vastas camadas de eleitores que já nada esperavam do “regime”.

Note-se, porém: o voto no Chega representa 10,8% do eleitorado, um em cada nove eleitores.

E o novo governo da AD recolheu o voto de um em cada seis eleitores (17,4%).

É importante acrescentar o seguinte: o voto no Chega, voto, obviamente, na extrema-direita, não é, contudo, um voto de classe da mesma natureza do voto AD. É o voto de desespero e rejeição de vastos sectores da pequena burguesia maltratados pelas políticas do regime UE/NATO/“arco da governação”. Apesar de terem muito em comum com os proletários e viverem amiúde lado a lado com eles, estes sectores, além de já não verem, como, aliás, muitos trabalhadores, saída do lado dos partidos que tradicionalmente representam o movimento operário (a “esquerda” do regime), entraram em revolta aberta contra eles, acicatados pela propaganda do demagogo de feira Ventura.

Esta revolta e transformação do afastamento em rejeição acontece, porém, quando a “esquerda” foi, anos a fio, mensageira privilegiado do regime UE/NATO ⎼ o regime que a burguesia portuguesa há muito abraçou e que é comum à “esquerda“ oficial, à direita oficial e ao próprio Chega.

Drástica, mas confusamente, rejeitando este regime, esta “base” eleitoral do Chega não oferece nenhuma base estável à sua manutenção, seja agora sob a batuta dos partidos burgueses tradicionais ⎼ e do próprio Chega, que é pró-UE e pró-NATO.

A crise política continuará, portanto, tendendo a tornar-se crónica.

Que conclusões tirar da crise da “esquerda”?

Entre a juventude e sectores de trabalhadores e activistas que procuram alternativas, o BE parece já ter dado o que tinha a dar. À parte mobilizar pelas famosas “causas”, tem-se arvorado sem descanso em primeiro e mais puro defensor do “Estado de direito”, das “instituições democráticas” e da “legalidade democrática” da burguesia, da governação (só que, é claro, com mais “competência”, “responsabilidade” e ”respostas”…) no marco das ordens da UE e da NATO. Já chegou inclusive ao ponto de votar pela militarização da NATO e pela intensificação da guerra contra a Rússia.

Entretanto, sectores significativos do que fora o “eleitorado potencial” do BE optaram por votar no Livre, já sem estômago para votar útil no PS como nas eleições anteriores. Talvez porque o Livre tem uma virtude importante: não só quer (como o BE) governar às ordens da UE e da NATO, como diz abertamente que quer governar às ordens da UE e da NATO, enquanto a direcção do BE estica até ao limite a corda da hipocrisia. Exemplo particularmente delirante foi o seu discurso néscio sobre as culpas da “maioria absoluta” (do PS), que realmente dizia que a culpa não era da direcção do PS e das obediências à UE e NATO a que se obriga; não, a culpa é de “alguém” lhe ter dado a “maioria absoluta”. “Alguém”, quem? O estúpido do “povo”, claro…!

Claro que, entre direcções de BEs, PCs e Livres, nenhuma disse abertamente ao “povo” a verdade que este entrevê, mas a que dificilmente pode dar forma: a de que o problema está precisamente nesse regime imperialismo/UE/NATO/euro ⎼ quando até os jornais “de referência” andam cheios de gráficos e números que mostram com nitidez o desastre que aconteceu à economia e à sociedade portuguesas desde, pelo menos, a adesão ao euro.

Como sempre, só a verdade é revolucionária.

A experiência da “geringonça” foi a da “esquerda“ a fazer a política da direita, a política mandatada pela UE/FMI/BCE. Acabou, confirmando a história, na ascensão dos demagogos fascistas a cavalgarem o desespero de camadas intermédias e desclassificadas.

O tempo e o lugar para construir a alternativa política de classe do trabalho

O movimento operário não sofreu uma derrota maciça, histórica.

Mas abre-se uma nova etapa. Uma etapa de agravamento dos ataques às conquistas da revolução, aos salários, aos sindicatos e organizações representativas dos trabalhadores. E uma etapa em que decerto o demagogo fascista procurará disputar a rua aos trabalhadores e à juventude.

Nessa etapa, é crucial construir a alternativa de classe que ajude os trabalhadores a libertarem-se das armadilhas da colaboração de classes, do institucionalismo e da subordinação aos grandes deste país e do mundo. Construí-la, agrupando sem sectarismos os lutadores, militantes e colectivos empenhados na defesa da sua classe, abrirá a possibilidade de fazer ganhos significativos no plano da organização da classe e da recuperação das conquistas, para um novo Abril.


[1] O princípio, mas não a verdade, mesmo formalmente. Basta ver que partidos como o PCP e o Livre precisaram de 50 mil votos para eleger cada um dos seus deputados ⎼ o Chega de apenas 23 mil.