Um governo de aldrabões baseado numa aldrabice e dependente de aldrabões ainda maiores

Todos a “viabilizaram” o governo Montenegro

O programa do novo governo minoritário PSD/CDS passou na Assembleia da República. O teatro parlamentar foi notável. O novo secretário-geral do PS a dizer que não votaria a favor de moções de rejeição, portanto, não inviabilizaria o governo; mas que, se houvesse uma moção de confiança, votaria contra ela, portanto, inviabilizaria o governo.

Como o único “se” que interessava à população trabalhadora era saber se se deixava ou não este governo ocupar o poder e governar, a resposta do PS foi: sim, forme-se o governo PSD minoritário, com o seu programa de entrega definitiva da habitação ao “mercado”, de continuação do desmantelamento do SNS, de ataque à segurança social, de redução de impostos para o grande capital (IRC) e os altos salários (IRS) e de continuação da subordinação do país à política imperialista de guerra da UE/EUA/NATO.

Do seu lado, o caudilho do Chega trovejou contra um governo formado sem ele. Mas disse logo que votaria contra as moções de rejeição: não inviabilizaria o governo. Que faria trinta por uma linha logo no dia seguinte se não falassem com ele. Mas não fez. O caudilho viabilizou o governo PSD/CDS minoritário, cujo programa não é muito diferente do seu.

Um governo muito frágil

Porém, o governo Montenegro é extremamente frágil.

É frágil não só pela aritmética parlamentar. É-o, também, porque os poucos votos que conseguiu ganhar nas últimas eleições os ganhou à custa de promessas “contra natura”: repor o tempo de serviço dos professores, aumentar os oficiais de justiça, etc. Para isso usando, ironia das ironias, o famoso “excedente” orçamental que o governo anterior amealhou à custa de paralisar o investimento público, desmantelar a escola e a saúde públicas e entregar a habitação à especulação desenfreada.

O excedente orçamental só existe, aliás, na contabilidade. A administração pública propriamente dita teve um défice. O superavit das contas do Estado é inteiramente composto pelo excedente da segurança social: a parte diferida do salário (colectivo) dos trabalhadores ainda por gastar, que aos trabalhadores, não ao Estado, pertence de direito.

Mas tão frágil é este governo, que a AD, que o compõe, se viu obrigada a pôr no coração do seu programa eleitoral uma pura e simples aldrabice de burlão de feira, o pretenso choque fiscal”.

Tão monumental foi o descaramento, que os jornais que fielmente promoveram a vitória da AD tiveram de se pôr de joelhos e pedir desculpa aos leitores por, acreditando na aldrabice, os terem aldrabado (ver a carta do director do expresso aos leitores).

Porque recorreu Montenegro a uma aldrabice de feira para tentar ganhar as eleições, e, mesmo assim, não conseguiu? 

No anterior número d’O Trabalho, em Fevereiro, antes das eleições, tínhamos nós escrito que, pelas novas regras europeias, o próximo governo precisaria “de um excedente orçamental de quase 3% durante quatro (ou sete) anos seguidos – sem contar com os juros de dívida (…) portanto, anos a fio, ter um excedente primário” (receitas menos despesas) igual a uns 6% do PIB. Tal nunca aconteceu.

Em 22 de Março, ainda não havia nenhum governo PSD, já o Público referia que “os planos traçados pela Aliança Democrática (AD) de corte dos impostos em simultâneo com a introdução de medidas de agravamento da despesa podem esbarrar nas novas regras orçamentais da zona euro, que irão condicionar até onde é que o futuro executivo pode ir já na proposta de Orçamento do Estado para 2025”.

Em 10 de Abril, noticiou o Público a declaração do Conselho de Finanças Públicas de que os excedentes orçamentais para 2024 e 2025 (note-se: valores “esperados” se não acontecesse nada de novo nem nas políticas nem no mundo) não iriam chegar para cobrir a perda de receita fiscal e aumento de despesa inerentes às promessas de aumentos dos pensionistas, de reposição do tempo dos professores, subsídios aos polícias e “valorização” dos profissionais de saúde constantes do programa eleitoral do PSD.

A razão da monumental aldrabice da AD

O fundo da aldrabice de Montenegro é a realidade nua e crua que temos exposto nestas páginas: se se aceita como princípio fundamental acatar os tratados da UE e da NATO (os “compromissos externos do país”, como se dizia nos acordos da geringonça), pouco importa quem está no governo.

A política é, nesse caso, uma e a mesma: decidida em Bruxelas, no ”semestre europeu” e noutros foros que nenhuma publicidade recebem, mandatada pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu segundo os interesses do grande capital alemão e francês, em última análise, do capital americano, que aperta o gasganete a Berlim, Paris e Bruxelas.

O que o governo de turno faz é executar o PRR e os milhares de milhões que ele rende às empresas; reduzir as “despesas permanentes do Estado” (os salários e empregos efectivos), conforme Centeno exorta sem descanso; manter os salários baixos; e aumentar os lucros.

Se bem que só nós apontemos esta evidência sem rodeios, há jornalistas e comentadores que a admitem, mas apenas, e de passagem, quando falam da realidade nua e crua. Não quando os preocupam “consequências políticas”. Aí, é vê-los arrepiar caminho. Voltam todos, como soldadinhos de chumbo, ao discurso do “realismo”, do “possível”, do horror que seria romper com a UE.

Feios, porcos e maus, mas não faz mal…

Quando, por fragilidade, desorientação e uma dose não negligenciável de estupidez, um partido, o PSD/AD, e um governo, o de Montenegro, são apanhados a aldrabar aberta e publicamente o país inteiro, a curiosa reacção dos outros partidos, comentadores e jornalistas embarretados, chocados e chorosos, é… “relativizar”: bem, afinal é o que todos fazem, bem, problemas de “comunicação”, ‘ai, que inépcia’, pardais ao ninho…

O maior aldrabão deles todos, Ventura, esfrega as mãos.

A verdade é esta: quem decide o que interessa não está sujeito a eleições ou pressões do povo. A miserável encenação quotidiana das pretensas “alternativas” e da pretensa disputa eleitoral e parlamentar acaba por servir principalmente para dar alimento aos pequenos, médios e grandes demagogos. As grandes fortunas começaram a lançar caudilhos e caudilhotes para a arena eleitoral, como equipas das “reservas”, barro à parede, caso não haja outro remédio senão acabar com o direito à greve e com a organização sindical e política dos trabalhadores à bordoada.

Mas essa batalha está por travar.

Para já, os enfermeiros e os trabalhadores da EDP vão à luta.

Professores e oficiais de justiça ficam prevenidos: se não se puserem a pau, da próxima aldrabice serão eles as vítimas.

Em Abril e Maio, a rua continua a ser dos trabalhadores.
A luta garantirá que assim continue.