O Relatório de Fiscalização da Comissão Europeia de Setembro de 2016
Quando todo o “espectro partidário” embandeirou em arco com a “vitória de Portugal” que fora, em finais de Julho passado, não o Europeu de futebol, mas o cancelamento das “sanções” da UE, nós dissemos nestas páginas que tal vitória era uma nefanda ofuscação.
Ofuscação, primeiro, do facto, límpido, que só tinha sido cancelada a multa monetária, mas não o resto das sanções, nomeadamente a suspensão, aliás “automática”, dos fundos estruturais e de investimento.
Mas ofuscação de bem mais. E bem pior.
Porquê?
O Relatório de Fiscalização Pós-Programa da Comissão Europeia de Setembro de 2016 (1) vem esclarecer de uma vez por todas porque foi a multa cancelada:
“Considerando os esforços passados e o firme compromisso das autoridades em acatar o PEC [Plano de Estabilidade e Crescimento] no futuro, o Conselho decidiu não multar Portugal.” (p. 5)
O Conselho decidiu não multar Portugal em virtude dos esforços passados (traduza-se: o “bom trabalho” do governo Passos Coelho, de funesta memória); mas, sobretudo, em virtude do firme compromisso das autoridades (actuais, ou seja, do governo Costa) de, no futuro, acatar o PEC.
O que é acatar o PEC? Vale a pena completar a citação acima: “[O Conselho] solicitou, contudo, às autoridades [portuguesas] que, até ao fim de 2016, adoptassem e executassem medidas de consolidação correspondentes a 0,25% do PIB, a acrescentar às economias já incorporadas nas previsões da primavera de 2016 da Comissão. Espera-se do governo português que, até 15 de Outubro, apresente à Comissão um relatório sobre a acção empreendida. Está, ainda, pendente a decisão sobre a possível suspensão dos Fundos Estruturais e de Investimento, que é necessário adoptar após diálogo com o Parlamento.”
Eis o que é acatar o PEC. Eis, também, qual foi o preço do cancelamento da “multa”: as autoridades portuguesas estão agarradas a um “firme compromisso” de executar cortes superiores aos que a multa lhes imporia. E dar disso contas já em Outubro. Senão…
O relatório passa, depois a explicar, em grande pormenor, o que é que, no presente, o governo Costa não tem feito bem. O que há, portanto, a corrigir no tal futuro para seguir a recomendação do Conselho, em substituição da multa, de cortar os tais 400 milhões adicionais em 2016 — mais do que o valor máximo da multa “cancelada” — e preparar um orçamento bem comportado para 2017.
O mau presente: “Com recuos pelo meio, em 2015 as reformas estruturais perderam balanço. Para melhorar a perspectiva de crescimento a médio prazo, a criação de emprego e a competitividade, é preciso que a reforma seja aplicada com mais ambição.” (ibidem, p. 5).
No passado, Passos Coelho deu grande balanço às “reformas estruturais”. Depois, houve eleições e, no presente, estas “perderam balanço”. No futuro, a “reforma” tem de ser voltada a aplicar “com mais ambição”.
Ainda não é claro? Mais uma ajuda: “A sustentabilidade do sistema de pensões não está ainda assegurada e poderá ser ameaçada pela reversão que o governo fez de determinadas medidas. Estão-se a reverter, também, outras reformas anteriores, incluindo o regresso da maioria dos funcionários públicos às 35 horas semanais e o congelamento do regime de requalificação dos funcionários, que visava promover a mobilidade na administração pública. (…) Recentes passos atrás na reforma das empresas públicas e a reversão parcial de algumas sub-concessões e de uma privatização acarretam riscos fiscais, podendo afectar negativamente a capacidade de atrair investimento estrangeiro. (…) Dado que a consolidação estrutural em Portugal requer uma redução duradoura do alto nível de despesa pública, é crucial fazer uma revisão global da despesa, com um mandato político claro e um conjunto concreto de metas.” (ibidem, p.6)
Todas as limitadíssimas medidas de alívio da austeridade tomadas pelo governo Costa (nem escapa a redução do IVA na restauração!) são implacavelmente identificadas pela Comissão como graves riscos, que o governo vai ter, nos termos do seu “firme compromisso”, de resolver.
Mas a palma vai para dois passos do relatório que revelam toda a sanha destruidora das instituições europeias e o absurdo da ideia de que é possível governar o país sem romper com elas:
A primeira: “(…) nos anos mais recentes, as pensões mais baixas sofreram cortes de menor grau do que outros benefícios sociais, protegendo, assim, comparativamente os idosos, mas aumentando as desigualdades intergeracionais em termos de risco de pobreza ou exclusão social.” (ibidem, p. 21)
É preciso uma pausa para digerir o alcance disto. Descontando o repugnante linguajar tecnocrático, o que é dito é isto: como os cortes às mais baixas pensões não foram tão fortes como outros cortes de regalias e prestações sociais, os que sofreram estes cortes e ainda não chegaram a reformados com pensões baixas — mas estão desde já obviamente condenados a uma pobreza cada vez mais negra — vão-se sentir invejosos da sorte dos velhos! Raramente a verdade sobre as intenções desta gente terá sido dita com tanto cinismo.
A segunda: “Estes aumentos [do salário mínimo] acarretarão ou um aumento dos custos totais do trabalho, se o aumento do salário mínimo tiver um efeito de dominó sobre as escalas salariais mais altas, ou, se não, comprimirão a distribuição salarial.” (ibidem, p. 26) O relatório explica, na verdade, que entre 2014 e 2016 a proporção dos trabalhadores que ganham o salário mínimo aumentou 60%! E que, com os aumentos planeados, cada vez mais trabalhadores que ganhavam um pouquinho mais que o salário mínimo passarão a estar ao seu nível — se não forem aumentados (perspectiva esta ainda mais tenebrosa para a Comissão).
E, efectivamente, no anexo em que o relatório se debruça sobre o cumprimento pelas autoridades portuguesas das recomendações do tal PEC, o veredicto a respeito do salário mínimo é claro: “Não houve progressos quanto ao salário mínimo. Em Janeiro de 2016, voltou a ser aumentado, de 505 para 530 euros, num contexto de inflação baixa e desemprego alto, fazendo pressão ascendente sobre a estrutural salarial global, acarretando risco para o emprego e a competitividade.” (ibidem, Anexo 1, p.37)
Leram bem, leitores. Não houve progresso… porque houve um aumento do salário mínimo (“mais um”!). É a linguagem da reacção negra.
O governo de António Costa e, forçosamente, os seus apoiantes parlamentares, projecta a imagem de alguém que conseguirá navegar à vista um rumo mediano entre a protecção dos trabalhadores portugueses e o “firme compromisso” com as instituições fiscalizadoras da UE. Este relatório da Comissão (como, de resto, todos os que o antecederam) esclarece quem o queira ler: “Não há rumo mediano! Há submissão, e o governo português já a aceitou”.
Porque se divulga tão pouco o que a Comissão Europeia realmente diz e escreve e se pretende fazer os trabalhadores portugueses crerem que não diz isso, diz outras coisas, que “há maneira”?
O resultado inevitável, em todo o caso, é a humilhante figura que o ministro das finanças é obrigado a fazer, dirigindo uma carta ao chamado Parlamento Europeu, órgão impotente, eleito por percentagens ridículas dos eleitores dos vários países da UE.
Lembre-se que quando se ganhou a “grande vitória” contra as sanções, Centeno desvalorizou a segunda sanção, a que não era a multa: a suspensão dos fundos estruturais e de investimento. Dizia ele: não faz mal, porque não tem impacto orçamental e nos anos mais próximos nem se nota.
Agora, Centeno escreve aos deputados europeus — porque, antes de propor a sanção ao Conselho, a Comissão tem de realizar um “diálogo estruturado” com o Parlamento: “A suspensão de fundos europeus teria um forte impacto na economia portuguesa, uma vez que afetaria a confiança e os planos de investimentos, muitos dos quais dependem de fundos europeus” (segundo a TSF(link is external)). Centeno diz que ficaria “muito mais duro” cumprir o famoso PEC… com o qual, recorde-se, o governo tem um “firme compromisso”, que valeu o Conselho Europeu cancelar a multa.
A CGTP denunciou a chantagem da Comissão sobre Portugal, expressa nos termos em que o relatório se refere ao salário mínimo. Com toda a razão. O problema, o verdadeiro problema, porém, é que é uma chantagem consentida pelo “firme compromisso” do governo português.
Esse é o nó que o governo do PS e os seus apoiantes parlamentares precisam de cortar. “Firme compromisso em acatar o PEC” (e o resto do espartilho da UE) ou defesa dos interesses dos trabalhadores portugueses. Os dois: impossível. A Comissão escreve-o ela própria a cada passo. O PS e seus apoiantes parlamentares também o sabem. É tempo de o dizerem.
24 de Setembro de 2016
AZ
(1) EU Commission Post-Programme Surveillance Report Portugal, Summer 2016 — Institutional Paper 036, September 2016, http://ec.europa.eu/economy_finance/publications/eeip/pdf/ip036_en.pdf, só publicado em inglês. Por razões sobre as quais o leitor poderá reflectir, este relatório tem sido referido na imprensa portuguesa como “relatório de monitorização” (DN) ou “de avaliação” (Observador). Ora, em inglês, “surveillance report” (contrariamente a, digamos, “monitoring report”!), significa inequivocamente ‘relatório de fiscalização, supervisão ou vigilância’, não de ‘monitorização’ — como facilmente o esclarece a consulta das próprias bases de dados linguísticas da UE. “Fiscalização” é bem diferente de “monitorização” (palavra recente do português burocrático, inventada para significar ‘seguimento’, ‘acompanhamento’).