Mário Soares morreu

Os pais da democracia foram os milhões que fizeram a revolução de Abril

A consagração de Mário Soares, morto, como pai da democracia em Portugal não só reuniu a quase unanimidade dos comentadores de todos os quadrantes políticos, como foi objecto de uma rara cerimónia de Estado. O primeiro funeral com honras de Estado dos últimos quarenta anos.

A direita, com o Presidente Marcelo à cabeça, liderou esta estranha canonização nacional — de que as massas populares largamente se alhearam. Canonizou, no homem que já não se podia defender, a sua própria salvação ante a revolução de Abril.

Canonização que ele quase certamente rejeitaria. Vejam-se as suas declarações na velhice, ao contemplar o que era, em grande parte, o fruto da sua acção de coveiro da revolução, que partilhou com a direcção do seu partido e a do PCP.

Na verdade, os dois maiores partidos dos trabalhadores portugueses recolheram a confiança e as esperanças das massas — e traíram-nas.

Mário Soares bateu-se contra a ditadura fascista. Foi preso e torturado. Foi exilado e deportado. Resistiu à ditadura. Foi um de milhares de combatentes e militantes, operários, comunistas, socialistas, democratas, que tornaram possível a derrota final do regime corporativo de Salazar e Caetano.

Foi Mário Soares o pai da “democracia portuguesa”? Não — e, honra lhe seja feita, recusou o qualificativo.

A democracia portuguesa foi filha de uma revolução. Não foi sequer o resultado do pronunciamento militar do dia 25 de Abril de 1974. Nessa mesma madrugada, os trabalhadores e a juventude transformaram a conspiração de oficiais numa revolução socialista. Pela liberdade, pela democracia, pela paz, pelo pão, pelo poder do povo, pelo socialismo.

Esses milhões de trabalhadores e jovens que saíram à rua, desafiando as ordens dos militares, que desmantelaram a PIDE e todo o Estado corporativo fascista, que expulsaram patrões, estabeleceram o controlo operário, ocuparam os quartéis, os latifúndios, que começaram a apoderar-se do país, esses milhões de trabalhadores e jovens anónimos não seguiram ninguém a não ser as suas aspirações profundas.

Foram eles os pais da “democracia portuguesa”.

O pronunciamento militar reflectia a agonia do regime, derrotado pela guerra de libertação das colónias portuguesas e pelo renascimento do movimento operário em Portugal.

Mário Soares constituíra pouco antes o Partido Socialista, no exílio. Regressado a Portugal, em discursos inflamados, proclamou a necessidade e a actualidade do socialismo. O PS tornou-se, com o PCP, no canal que os trabalhadores e jovens portugueses procuraram usar para, desfazendo-se do regime fascista, desfazerem-se do capitalismo e levar a revolução até ao fim.

Rapidamente, porém, Mário Soares fez o que fizeram ao longo do século XX os dirigentes social-democratas (e estalinistas) de todos os países europeus: traiu as aspirações revolucionárias da população e salvou o Estado. Como ele disse, numa expressão feliz, “meteu o socialismo na gaveta”.

Quando, em 1975, os trabalhadores socialistas resistiram ao silenciamento do “República”, à “unicidade sindical” e às medidas antigreve de um ministro PCP do governo militar, Soares e o PS erigiram-se “defensores da democracia”. Porém, logo utilizaram a confiança que as massas neles depositaram para unir esforços com os frágeis partidos burgueses na reconstrução do Estado burguês e na adesão à CEE. As consequências, sofre-as hoje o país com rara violência.

Mário Soares fez-se na revolução. Cavalgou-a para a quebrar e domar. Mas a revolução também fez Mário Soares.

À vista da sua obra, devolvido o país, em grande parte, aos seus donos de sempre e aos novos amos do capital financeiro internacional, Soares não ficou contente. Na velhice, já sem responsabilidades de poder, disse, por exemplo, em entrevista ao jornal espanhol El País em Março de 2014, que “a única maneira de falar com estes mercados é dizer-lhes: “Não, não pagamos”. Pois “ver que somos um protectorado da troika rói-me as tripas”.

Fazem os seus sucessores o que o Soares liberto de pensar em primeiro lugar no “interesse do Estado” concluiu ao ver a sua obra? Não. Para o PS dos que hoje ocupam o lugar de Mário Soares, não pagar a dívida é uma heresia — que, aliás, nem a “esquerda da esquerda” ousa murmurar, balbuciando timidamente vagas ideias de “restruturação”.

Que estranhas forças movem estes dirigentes?

O estado de decadência final do capitalismo em que nos encontramos tem esta consequência: os que, reclamando-se embora do socialismo, recuam ante a revolução e procuram uma via de conciliação, proclamando que são possíveis “reformas” sem rupturas, cedo acabam, invariavelmente, a “meter o socialismo na gaveta” — e, pior, a dirigir os exércitos da contra-revolução contra as conquistas da revolução, substituindo os generais tradicionais da direita, cilindrados pelas massas em movimento.

Soares sabia que as troikas e o protectorado da UE sobre Portugal são consequência directa dos tratados que assinou ou aprovou, das privatizações, das desocupações, da “livre concorrência”. Não o soube na sua velhice, sabia-o quando o fez. Mas fê-lo — pois a única alternativa era a ruptura, e dirigentes como Mário Soares temem acima de tudo a ruptura completa com o capitalismo.

Essa é a lição que a vida de Soares oferece: por muito que o passado esteja carregado de luta e resistência, não há meio termo entre revolução e contra-revolução. Quem recua ante a ameaça do grande capital mundial, acaba a servi-lo, à cabeça da reacção.

Não é preciso ser “socialista” ou “social-democrata” para isso. Basta olhar para o percurso de Alexis Tsipras, da “esquerda radical”, na Grécia de hoje. À beira da ruptura que as exasperadas massas gregas exigiam, cavalgou o movimento. No último momento, assustou-se e traiu o mandato de ruptura. Acabou, em poucas horas, a servir a troika e a esmagar os trabalhadores gregos com mais austeridade e repressão.

“Socialismo ou barbárie” não é uma frase. Meter o socialismo na gaveta é tirar a barbárie da gaveta.