EUA: ‘Não Recuaremos!’

Editorial do jornal The Organizer, vol. 25, nº 12, Dezembro de 2016, ligeiramente adaptado

Três semanas depois de Trump ser declarado vencedor da eleição presidencial, trabalhadores com salários baixos saíram à rua em 320 cidades de todo o país, com os seus sindicatos, para reivindicar um mínimo de 15 dólares por hora e o direito de criar um sindicato no McDonalds e noutros restaurantes de refeições rápidas. Em muitas cidades, inclusive no Sul, os trabalhadores entraram em greve para dar força às suas reivindicações.

O espírito de luta das manifestações e comícios ecoava nas principais palavras de ordem, gritadas vezes sem conta: “Exigimos 15 dólares/hora e direitos sindicais! —O às deportações! FIM à matança de negros pela polícia! Não recuaremos!”.

Essa afirmação, de que trabalhadores e todos os oprimidos “não recuarão” na defesa dos nossos direitos e conquistas fundamentais, encontrou também expressão em manifestações espontâneas de estudantes do ensino secundário e inúmeras outras acções de protesto em todo o país.

Agora que Trump está prestes a tomar posse, o número e alcance desses protestos está em crescendo.

Resistência!

No dia 19 de Janeiro, professores e defensores do ensino público — apoiados pelos dois sindicatos nacionais de professores, o AFT e o NEA — estarão na rua em Jornada Nacional de Acção em Defesa do Ensino Público, organizada pela “Aliança pela Recuperação das Nossas Escolas” (AROS). Protestarão contra a nomeação por Trump da bilionária Betsy DeVos para Ministra da Educação. DeVos tem reclamado abertamente o desmantelamento das escolas públicas e pô-las no mercado.

No dia 20 de Janeiro — dia da tomada de posse — , dezenas de milhares mobilizar-se-ão em Washington, D.C., em protesto para “Fazer Frente a Trump, àGuerra, ao Racismo e àDesigualdade“.

No dia 21 de Janeiro, a Marcha das Mulheres sobre Washington verá dezenas de milhares de mulheres e defensores dos direitos das mulheres manifestarem-se e concentrarem-se para “enviar uma mensagem forte ao nosso novo governo, no seu primeiro dia de mandato, e ao mundo, de que os direitos das mulheres são direitos humanos.

Todo o país se indigna com mais uma eleição roubada. Hillary Clinton foi apurada vencedora do voto popular por cerca de 3 milhões de votos; porém, o Colégio Eleitoral, um resquício dos tempos do esclavagismo, confiscou mais uma vez esse direito democrático fundamental: “uma pessoa, um voto”.

Indignação pelo facto de dezenas de milhares de eleitores negros terem sido expurgados das listas de eleitores em estados críticos, através do programa “Crosscheck”, financiado pelo Partido Republicano (Greg Palast, “A Eleição Roubada”).

Indignação, mesmo da parte de eleitores operários brancos que votaram em Trump, por o executivo de Trump ser preenchido por políticos e banqueiros-bandidos (três altos cargos vão para executivos da Goldman Sachs) do mesmo establishmentque ele denunciou alto e bom som durante a campanha eleitoral. (“Limpar o pântano1? Vou ali e já venho…)

Indignação por o establishment político ter produzido porventura os dois candidatos presidenciais mais impopulares da história — resultado: a segunda maior taxa de abstenção da história dos EUA — e por as instituições políticas do país não servirem a maioria trabalhadora.

Indignação por Hillary Clinton ter ignorado os eleitores de Sanders logo que se viu indigitada pelo Partido Democrata, e fúria por Sanders ter virado as costas à sua própria plataforma e aos que o apoiaram, apelando à adesão a Clinton, a candidata quase unânime da classe capitalista.

Mas fúria também nas fileiras do movimento operário por a AFL-CIO e o Change to Win apoiarem a candidata da Wall Street e cederem a todas as exigências que o Partido Democrático lhes impôs (com a cumplicidade de Sanders) — nem sequer levantando na Convenção do Partido Democrático duas questões que são posições oficialmente adoptadas pelo movimento sindical, a do sistema de saúde baseado no salário diferido (single-payer) e a oposição à TPP.

Há grande preocupação, entre os trabalhadores que votaram no Partido Democrático para barrar Trump, por os democratas, mesmo os mais “progressistas”, estarem determinados em assegurar uma “transição ordeira”, em vez de fazerem frente aos republicanos em resposta à declaração de guerra unilateral de Trump e seus bilionários indigitados para o governo contra o povo trabalhador.

Todos da mesma equipa?

• Barack Obama foi o primeiro a dar a cara para pela necessidade de uma “transição ordeira”, afirmando, em 10 de Novembro:

Toda a gente fica triste quando o seu lado perde uma eleição. Porém, no dia seguinte, temos de nos lembrar que a verdade é que estamos todos na mesma equipa. É uma refregaentre nós. Não somos primeiro democratas. Não somos primeiro republicanos. Somos primeiro americanos… Agora,estamos, todos unidos, a torcer por que ele [Trump] consiga unir e liderar o país.

Sim, eles são todos da mesma equipa; a equipa da classe dominante, do 1% que possui, controla e manda na economia do país e nas instituições políticas. A classe trabalhadora não é dessa equipa.

  • Hillary Clinton juntou-se ao coro: “Trump vai ser o nosso presidente. Temos a obrigação de mantero espírito aberto e dar-lhe uma oportunidadepara dirigir.
  • Elizabeth Warren, a política de Massachusetts que está na calha para ser o novo rosto do Partido Democrata, não ficou atrás: “O presidente eleito Trump prometeu reconstruir a economia para os trabalhadores; proponho que ponhamos de lado as nossas diferenças e trabalhemosnisso com ele”.
  • Depois foi a vez de Bernie Sanders, que emitiu uma declaração a dizer, nomeadamente: “Na medida em que o Sr. Trump leve a sério fazer políticas que melhorem as vidas das famílias trabalhadoras deste país, eu e outros progressistas estamos dispostos a trabalhar com ele”.
  • Alguém acredita, um segundo que seja, que Trump vai reconstruir a economia para os trabalhadores ou promover políticas que melhorem a vida das famílias trabalhadoras? Fez-se, por exemplo, muito alarido com os 1.100 empregos que Trump “salvou” na empresa Carrier, no Indiana. Mas a verdadeira história é totalmente diferente, como explicou Ruth Needleman, professora emérita da Universidade de Indiana:
  • Cerca de 800 postos de trabalho —e não 1.100 serão salvos. Mas a realidade é que, mesmo assim, a Carrier vai mandar mais empregos para o México do que os que mantém aqui em Indiana, uns 1.370. Além disso, o acordo exigirá que os contribuintes do Indianacubram os 7 milhões de dólares em benefícios fiscais dadosà United Technologies, proprietária da Carrier, com a promessa de os impostos sobre os rendimentos do capital baixarem de 35% para 15%. Trump optou não por punir, mas por premiar a fugade empresas.” (“The Carrier Deal”, Portside).
  • E depois, a outro nível, apareceu o Presidente da AFL-CIO, Richard Trumka, a declarar: “A AFL-CIO dá os parabéns ao presidente eleito Trump… O presidente eleito fez promessas na sua campanha —em matéria de comércio, de recuperação da indústria, de revitalização das nossas comunidades. Trabalharemos para tornar realidade muitas dessas promessas. Se ele estiver disposto a trabalhar connosco, de acordo com os nossos valores, nós estamos prontos para trabalhar com ele”.

Pode ser que Donald Trump altere a TPP, se bem que seja longe de ser certo. Mas, se o fizer, será apenas para contemplar as preocupações de uma ala do capitalismo americano com os “direitos de propriedade intelectual” e outras matérias. Dar a entender que Trump quererá rever os acordos de “comércio livre” para melhorar os direitos dos trabalhadores ou do meio ambiente é, na melhor das hipóteses, ilusório. De facto, poucas semanas depois de Trumka estender o ramo de oliveira a Trump, o movimento operário levou um murro em pleno na cara com a nomeação do executivo de refeições rápidas Andrew Puzder, um homem que se opõe a aumentar o salário mínimo e quer destruir os sindicatos.

Que resistência?

Os políticos do Partido Democrata estão todos a pedir boleia à “resistência”, na esperança de recuperarem eleitores para o seu partido nas eleições de 2018 e 2020. A democrata californiana Dianne Feinstein, ligada ao empresariado, anunciou à imprensa, no início de Dezembro, que se iria “pôrà cabeça da resistência a Trump”. (Um leitor do The Organizer, que nos fez chegar a declaração de Feinstein, acrescentou: “Bem tramados estamos se é ela aencabeçar a resistência!”)

Dois militantes da zona da baía de São Francisco activistas pelos direitos dos imigrantes, entrevistados pelo The Organizer, avisam que os democratas já se estão a preparar para fechar acordos com Trump. Fazem a observação de que o Partido Democrático pode continuar a apoiar o “Diferimento de Acção à Chegada de Menores” (DACA)2 de Obama, fechando, em contrapartida, os olhos à planeada deportação por Trump de 3 milhões de imigrantes indocumentados “não merecedores”.

Dizem os activistas que “o que dizemos às pessoas que lutam pela protecção de crianças trazidas pelos pais para os Estados Unidos muito jovens é que, sim, devemos preservar o DACA, mas não devemos deixar dividir a nossa comunidade entre ‘bons imigrantes’ e ‘maus imigrantes’ — como os republicanos, com a cumplicidade de tantos democratas, procurarão fazer. Não podemos deixá-los criar uma cobertura política para as rusgas e deportações de 3 milhões de pessoas rotuladas decriminosos.

Esta preocupação bate no ponto. Aponta para a questão mais fundamental de garantir a independência política do movimento operário e seus aliados nas comunidades locais em relação aos partidos gémeos dos patrões: democratas e republicanos.

Uma festa que não será só para o 1%”?

Há muita conversa nos dias de hoje em círculos trabalhistas progressistas sobre a necessidade de “reconquistar” o Partido Democrata aos “democratas do establishment” e retorná-lo às suas “raízes na classe trabalhadora”.

É uma ficção total alegar que o Partido Democrata alguma vez representou os interesses da maioria trabalhadora. E as dezenas de tentativas feitas ao longo dos anos para “reconquistar” o Partido Democrata — de Eugene Mc-Carthy a George McGovern, Jesse Jackson e Jimmy Carter, para citar apenas alguns — falharam, todas, miseravelmente.

O mesmo acontecerá, também, a este esforço de Bernie Sanders e dos seus, pois a crise cada vez mais profunda do sistema capitalista não permite qualquer margem de manobra para os democratas fazerem concessões à classe trabalhadora e aos oprimidos. A única coisa que os capitalistas e os políticos ao seu serviço podem oferecer é mais guerra, maior exploração e mais empregos a tempo parcial, precários, sem regalias sociais. E, para isso, eles precisam de manter o “jogo da vermelhinha” dos dois partidos capitalistas.

Sanders — a quem só deram espaço no Partido Democrata e audiência nos meios de comunicação do capital por ter prometido desde o primeiro dia que apoiaria Hillary Clinton nas eleições de Novembro — calcorreia agora o país a promover a campanha pela reconquista do congresso e da presidência para os democratas “bons” nas próximas eleições.

A mensagem é esta:

“Temos de travar combate contra os “democratas do establishment”; temos de criar um partido basista que represente os trabalhadores e não apenas o 1%, um partido que represente a “rua principal” (Main Street) e não apenas os milionários e grandes financiadores”3.

Esta frase concentra em si tudo o que está mal.

Resgatem a Main Street, NÃO a Wall Street!

Não. Não é possível um partido político representar tanto os interesses dos capitães da indústria e das finanças (Wall Street) como os da maioria da classe trabalhadora (Main Street). Esses interesses são contraditórios. E os interesses são ainda mais vincadamente contrapostos numa época ainda em grande parte marcada pelo colapso económico e financeiro de 2008 (não só o país não saiu da grande recessão, como há analistas que prevêem uma nova derrocada financeira nos meses vindouros).

A direcção do movimento sindical aprovou o resgate da Wall Street por Obama, que valeu 8 biliões (8 milhões de milhões) de dólares, alegando que era necessário resgatar tanto a Wall Street como a Main Street. Escusado será dizer que a Main Street se tramou — razão por que Trump ganhou a maioria do voto da classe trabalhadora no devastado coração industrial do país — enquanto a Wall Street fez um negócio da China.

Os capitães da indústria e das finanças precisam de que os trabalhadores acreditem que os democratas podem estar do lado deles. É o embuste mais cuidadosamente organizado de que há memória. Felizmente, cada vez mais são os que se dão conta de que isso não é possível. Cornel West, ex-apoiante de Bernie Sanders, é um deles; há muitos outros.

Além disso, todos os esforços para reformar o Partido Democrata têm acabado por desmobilizar e fazer descarrilar os movimentos de mudança social. Em nome do apoio aos candidatos “menos maus”, as reivindicações dos trabalhadores acabam por ser diluídas, e os movimentos acabam por serem canalizados das ruas para as inofensivas (para a classe dominante) estruturas do Partido Democrático.

É por isso que as lutas de “resistência” que se desenrolam hoje têm de manter a sua base ampla e independente dos democratas e da sua agenda eleitoral. As reivindicações têm de ser precisas e intransigentes — ao contrário das de “Fight the Right!” / “Contra a Direita!” (que dilui a linha de classe) ou de “Women’s Rights Are Human Rights!” / “Os direitos da mulher são direitos humanos!” (que faz silêncio sobre os ataques crescentes ao direito de escolha das mulheres). As coligações construtoras destas acções têm de se basear em assembleias democráticas e de massa.

As acções devem também acolher os trabalhadores e sindicalistas brancos que votaram em Trump, mas que já estão a ser traídos. Como disse ao The Organizer Nnamdi Scott, candidato da classe trabalhadora negra à vereação municipal do 7º Distrito de Baltimore: “Independentemente da retórica de Trump, ele vai desamparar a classe trabalhadora branca. Não tem outro remédio. Não se pode salvar a classe dos trabalhadores e a classe capitalista ao mesmo tempo.

A questão chave hoje

O que as eleições de Novembro de 2016 mostram com mais veemência do que nunca é a necessidade de o movimento operário — e, especialmente, os dirigentes da AFL-CIO e de Change to Win — romper os laços de subordinação ao Partido Democrático e construir um partido dos trabalhadores apoiado nos sindicatos e grupos oprimidos. Aquela subordinação é o obstáculo número um que os trabalhadores deste país têm pela frente.

Apesar de todos os esforços dos meios de comunicação dominados pelo capital e da intelectualidade para esconder esse fato crucial, a luta de classes — isto é, a luta entre classes sociais com interesses contraditórios e contrapostos — continua a ser o motor da história.

Os sindicatos são as únicas organizações que, nos Estados Unidos, representam e organizam a classe trabalhadora numa base de classe. Os trabalhadores precisam de uma voz política, um partido político, que defenda exclusivamente os seus interesses e os dos seus parceiros oprimidos. Os patrões têm dois partidos, os trabalhadores precisam de um que seja seu.

O movimento sindical tem sido muito enfraquecido por décadas de dependência do Partido Democrático. A ausência da arena eleitoral de um partido político próprio do movimento operário, o seu Partido Trabalhista, tem continuado a minar a base do movimento operário. Tem permitido a deslocação do espectro político cada vez mais para a direita e empurrado os trabalhadores descontentes com o Partido Democrático para, no dia da eleição, ou ficarem em casa ou votarem num demagogo populista de direita como Trump.

Mas o movimento operário continua a ser uma força formidável. E o seu poder potencial, uma vez liberto da subordinação aos democratas, é exponencialmente maior.

O que hoje faz falta é, em nossa opinião, um comité organizador nacional — com o movimento operário ao leme, em aliança com os seus aliados negros e latinos — que promova uma nova estratégia política para o movimento operário. Tal comité — segundo o modelo dos Labor Party Advocates (Promotores do Partido Trabalhista) — serviria, também, para promover acções de massa independentes de resistência; mas teria como foco dar o pontapé de saída para a apresentação, em 2018, de candidaturas genuinamente independentes do movimento operário e dos oprimidos a cargos locais e estaduais.

Pela nossa parte, nós, do jornal The Organizer, convidamos os nossos leitores a intervirem nesta discussão: o que será preciso fazer para dar o pontapé de saída para esta política independente? É o Partido Verde uma alternativa e, se não é, por que não? O que será preciso fazer para conseguir edificar uma conferência ampla (ou, se as condições o permitirem, um congresso) do movimento operário e dos oprimidos para promover (1) a apresentação de candidatos independentes do movimento operário e das comunidades oprimidas e (2) focar a discussão na necessidade de um novo partido político da maioria trabalhadora — um partido baseado nos sindicatos e nas comunidades oprimidas.

As páginas de nosso suplemento sindical — Unidade e Independência — estarão abertas a todos, ao passarmos, a partir de janeiro de 2017, a uma periodicidade mensal. Mandem as vossas contribuições para <theorganizer@earthlink.net> ou para PO Box 40009, San Francisco, CA 94140.

NOTAS

1 Drain the Swamp! (Limpemos o pântano!) foi uma das palavras de ordem que emergiram na campanha de Trump. O “pântano” era Washington, ou seja, os “políticos” corruptos e afastados do povo. (NdT)

2Deferred Action for Childhood Arrivals (DACA) é uma política americana de imigração iniciada pela administração de Obama em Junho de 2012. Permite a certos imigrantes indocumentados que tivessem entrado nos Estados Unidos menores de idade obterem um diferimento de acção de deportação por períodos de dois anos renováveis e a habilitação a uma licença de exercício de actividade profissional. (fonte: Wikipedia, NdT)

3 (Politico, 10 de Dezembro de 2016).