Carta Aberta a João Vasconcelos, deputado à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda

Lisboa, 4 de Maio de 2017,

Sr. deputado João Vasconcelos,

Foram-lhe recentemente atribuídas, nas páginas de um semanário francês1, as seguintes palavras:

Nestes tempos perigosíssimos em que vivemos, a realização da IXª Conferência Mundial contra a Guerra e a Exploração, em Argel, no próximo mês de Outubro, tem candente actualidade. O imperialismo e os seus fantoches não perdem ocasião de infligir golpes aos povos, no intuito de intensificar a sua exploração e o seu império. (…) recorrem a invasões devastadoras e criminosas para subjugar todos os povos que se erguem contra a tirania ou que, simplesmente, não estão de acordo com os seus diktats. A ameaça de uma nova guerra mundial pode tornar-se realidade em breve. Guerras regionais terríveis têm devastado nações e povos sob o pretexto mentiroso de combater o terrorismo ou eliminar ditadores. Países e regiões inteiros têm sido e continuam a ser destruídos — o Iraque, a Líbia, a Síria, o Iémen, o Afeganistão, o Mali, a Palestina e muitos outros. Trump quer levar a guerra mais longe, já começou a atacar a Síria e o Afeganistão e prepara-se para fazer a mesma coisa com a Coreia do Norte. É assim que se prepara uma nova guerra mundial que, desta vez, poderá ser nuclear e ter consequências catastróficas para toda a humanidade.2

Poderíamos, mais coisa, menos coisa, partilhar a sua análise e a sua acusação aos que designa de “o imperialismo e os seus fantoches”.

Poderíamos: se estas palavras contra a guerra, que proferiu em Paris a promover uma “Conferência Mundial contra a Guerra e a Exploração”, se coadunassem com a sua acção prática na Assembleia da República.

Quer-nos, contudo, parecer que não é o caso.

Os factos em que nos baseamos são do domínio público. Qualquer pessoa pode certificar-se deles.

Sr. deputado João Vasconcelos,

O sr. deputado pertence à maioria parlamentar em que o actual governo se apoia, composta pelos grupos parlamentares do Partido Socialista, do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda. Ocupa, também, o cargo, para que foi designado, de vice-presidente da Comissão Parlamentar da Defesa Nacional.

Nesse contexto, o sr. deputado votou a favor do orçamento de 2017, que inclui as dotações militares, nomeadamente as dotações afectadas às intervenções militares portuguesas no estrangeiro, a maioria delas no âmbito da NATO, de que Portugal é membro, liderada pelo governo dos Estados Unidos.

É este orçamento militar, que, pelas suas funções, necessariamente conhece em pormenor, que financia o envio, em Fevereiro passado, do Quinto Contingente português para o Afeganistão no quadro da Resolute Support Mission (RSM). Por outras palavras: no quadro da criminosa ocupação militar, responsável, só no ano de 2016, pela morte de 11.500 civis afegãos, 3.500 deles, segundo a ONU, crianças!

O ministro da defesa do governo que o sr. deputado apoia declarou recentemente ao semanário Expresso (8/10/2016) ser ““certo” que o Governo pretende manter “idêntico empenhamento português no âmbito da Aliança Atlântica” em 2017 (…). A possibilidade de Portugal participar numa missão da NATO no Iraque já tinha sido admitida pelo ministro em Junho passado.” 

Na mesma ocasião, o sr. deputado votou igualmente as Grandes Opções do Plano para 2017, que destacam “a importância da relação com a América do Norte, nomeadamente os Estados Unidos da América, no quadro do Acordo de Cooperação e Defesa (…)”.

Em Paris, o sr. deputado denuncia que “Trump quer levar a guerra mais longe, já começou a atacar a Síria e o Afeganistão e prepara-se para fazer a mesma coisa com a Coreia do Norte.

Porém, em Lisboa, o sr. deputado, com o grupo parlamentar do BE, põe à votação, no dia 16 de Fevereiro de 2017, um voto de condenação pelo qual “a Assembleia da República, reunida em sessão plenária, condena o lançamento de um míssil balístico pela Coreia do Norte, rejeita a corrida internacional ao armamento, afirma a necessidade de um compromisso global pelo desarmamento nuclear e apela à implementação do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.

Das duas, uma, sr. vice-presidente da comissão da defesa nacional: ou o responsável pela escalada militar é Trump, como diz em Paris.

Ou quem se deve condenar é a Coreia do Norte, como o sr. deputado votou em Lisboa, sendo, nesse caso, justificada a política de Trump. Mas a cavalo das duas posições não se pode ficar!

Sr. deputado, o ministro da defesa e o governo cuja viabilidade o seu grupo parlamentar assegura afirma repetidamente, a quem quiser ouvir, o seu compromisso indefectível com a NATO sob a liderança dos EUA de Donald Trump.

Será de perguntar de que modo votará o sr. deputado quando Donald Trump ameaçar directamente a soberania da Argélia a partir da base militar norte-americana de Morón de la Frontera (perto de Sevilha)!

Sr. deputado João Vasconcelos,

À vista destes factos, conhecidos, públicos e verificáveis, observamos com pesar que os seus discursos “contra a guerra e a exploração” de Paris aos “domingos e feriados”… servem de máscara para acções e votações favoráveis às guerras de Trump em Lisboa nos dias úteis! É possível que o sr. deputado não se dê conta disso?

Tais acções desacreditam iniciativas “contra a guerra” em que participe!

Alguns dos signatários desta carta aberta empenharam-se na resistência anterior à Revolução de Abril de 1974, recusando-se a participar nas guerras coloniais e, do exílio, apoiando os combatentes pela independência da Guiné, Angola e Moçambique.

Ontem como hoje, não aceitamos que tais guerras sejam feitas em nome do povo português!

1 Informations ouvrières n°450, 27 de Abril de 2017.

2 Nossa tradução do francês.