Cada verão, logo que as temperaturas sobem, a vasta floresta portuguesa começa a arder. Pelo seu número e superfície queimada, os fogos florestais portugueses atingem quase sempre dimensões incomparáveis às de outros países do Sul da Europa.
Desta vez, condições meteorológicas especialmente adversas deram origem a um incêndio, começado em 17 de Junho, que alastrou a grande velocidade em três municípios do centro do país. Em poucas horas, mais de 60 pessoas morriam asfixiadas e queimadas, a maioria delas nos seus carros, ao fugirem do fogo por uma estrada nacional. Estrada em que a floresta começava imediatamente na berma. Nem vestígio dos dez metros de separação que a lei exige para estradas nacionais.
As imagens de carros esventrados e aldeias queimadas confundem-se facilmente com imagens de um país em guerra.
E não é por acaso.
O abandono dos campos portugueses pelos camponeses empobrecidos e empurrados para a emigração interna e externa iniciou-se nos anos sessenta e foi rápido e em larga escala. A integração na UE que veio depois reduziu ainda mais qualquer esperança de rentabilidade para as actividades da economia agrícola camponesa e da pastorícia.
O campo transformou-se em floresta. A nova floresta portuguesa tornou-se matéria-prima da indústria da pasta de papel, uma das poucas indústrias “competitivas” que restaram em Portugal.
Matéria-prima barata (o que explica a “competitividade” da indústria), pois esta indústria é um exemplo da “máquina expropriadora” que o capitalismo sempre foi e cada vez mais é. Além das grandes explorações propriedade directa dos industriais, a propriedade da floresta está muitas vezes de tal maneira subdividida, que os “proprietários” nominais não têm outra opção que não seja vender a madeira ao preço baixo fixado pelos industriais.
Matéria-prima barata também por as espécies autóctones terem sido substituídas por eucaliptos de crescimento rápido, que secam os solos e passam sem cuidados humanos, que os pequenos proprietários de qualquer modo não podem assegurar com os preços que recebem.
Os incêndios pouco mudam ao valor comercial da pasta para papel. Representam perdas bem mais ligeiras do que o custo dos cuidados humanos necessários para preveni-los.
Os sucessivos políticos ao serviço do capital e da UE fazem de conta que adoptam leis de ordenamento do território e da floresta. Depois instituem organismos que fazem de conta que as mandam aplicar. As restrições orçamentais e a austeridade imposta pela UE impedem que tais leis produzam o mínimo efeito. Os serviços de guardas florestais e guarda-rios foram praticamente desmantelados ao longo dos anos. Mesmo os meios de combate ao fogo vivem essencialmente da dedicação e muitas vezes do sacrifício dos bombeiros voluntários. Não raro os bombeiros têm em atraso os seus salários de miséria.
Um serviço de “alta tecnologia” (SIRESP) de coordenação digital das comunicações entre todos os serviços encarregados das situações de emergência em Portugal foi confiado, em 2005, a uma Parceria Público-Privada (PPP), modelo favorito da UE, na prática por ela imposto. O sistema falhou completamente quando o incêndio deflagrou, contribuindo, pelo menos, para o elevado número de mortos. O consórcio que ganhou a PPP em 2005, num valor de cerca de 500 milhões de euros, era composto por algumas empresas e indivíduos, todos eles, sem excepção, envolvidos nos escândalos e falências financeiros e bancários dos últimos anos. Entre eles a PT, vendida há alguns anos à multinacional francesa Altice. O preço da acção da PT caíra, nessa altura, 80% em relação ao de antes da privatização. A imprensa relata (ver, por exemplo, o Público de 22 de Junho) que o SIRESP falhou de cada vez que houve uma emergência extrema no país nos últimos dez anos.
Assim, a presença de aldeias povoadas por alguns camponeses idosos no meio do novo tecido florestal português e os riscos que os incêndios os fazem correr não diferem muito, no fim de contas, dos prejuízos colaterais em civis mortos “aceites” quando aviões americanos, britânicos, franceses, etc., bomabardeiam países em que está em causa petróleo em vez de madeira.
Não se ignore que o exército português contribui, aliás, em muitos casos, para esse “esforço” dos seus aliados da NATO. Há poucos dias, um soldado português morreu no Mali por conta da ocupação francesa do país.
O princípio é o mesmo. Passou há muito o tempo em que o capitalismo contribuía, posto que à custa do sofrimento de milhões de explorados, para o progresso da indústria humana, para o domínio da natureza e dos recursos naturais.
As vítimas dos incêndios florestais em Portugal são vítimas da guerra generalizada que o capitalismo agonizante trava contra a humanidade.
AZ