O Crepúsculo da Vª República – Eleições em França, La Tribune des Travailleurs

O Crepúsculo da Vª República

Daniel Gluckstein, La Tribune des Travailleurs, nº 335, 13 de Abril de 2022

No dia a seguir à primeira volta das eleições presidenciais, a manchete de Le Monde era: “Macron-Le Pen, duelo num campo de ruínas”. O campo de ruínas é o regime da Vª República, por onde se espalham os escombros das representações políticas que nele tradicionalmente se enquadravam.

Só se pode compreender a situação olhando-a no ponto de vista das classes sociais envolvidas.

A Vª República assenta num princípio: todos os poderes estão nas mãos do presidente. Este, pedra de fecho das instituições, pode tomar todas as decisões essenciais sozinho. Bonaparte supostamente acima das classes, ele está, na realidade, sempre ao serviço da classe capitalista.

No dia 10 de Abril de 2022, este princípio bonapartista inverteu-se: a rejeição de Macron dominou tudo o mais. Isso começou por se reflectir na abstenção. Das doze eleições presidenciais da Vª República, a abstenção de 2022 é a segunda maior: mais de 26% (explicando-se o recorde histórico de 2002 por os dois principais candidatos terem praticado cinco anos de coabitação, Chirac como presidente, Jospin como primeiro-ministro).

A abstenção é maioritária entre os jovens, quase um em cada dois. Também é dominante em zonas operárias e populares. Quanto aos eleitores que foram às urnas, muito da sua escolha norteou-se por uma pergunta: qual dos candidatos, à esquerda ou à direita, será o mais eficaz para nos livrarmos de Macron? Aquilo a que se tem chamado “voto útil” não reflecte um acordo com o programa destes candidatos, mas uma aspiração profunda de “correr com o Bonaparte”. Num regime bonapartista, quando a eleição se concentra em quem há-de “tirar de lá o Bonaparte”, o que está em causa é o próprio edifício institucional.

Recordemos que, já em 2017, Macron não era o escolhido da classe capitalista. Foi, nas suas próprias palavras, eleito “por arrombamento”, aproveitando uma extraordinária combinação de circunstâncias (nomeadamente o colapso do candidato do partido gaullista). A sua chegada à cabeça na primeira volta forçou a burguesia a, na segunda, unir-se à volta do seu nome. Hoje, Macron – que só colheu o voto de um de cada cinco eleitores recenseados – continua a ser meramente o escolhido da burguesia à falta de melhor. A classe capitalista conhece a sua fragilidade: não conseguiu levar até às últimas consequências a reforma das pensões e toda uma série de ataques, apesar de neles ter consistido o seu programa em 2017.

Ao ponto de uma parte da burguesia jogar abertamente a carta da extrema-direita: Bolloré com Zemmour, outros com Le Pen. O banco Natixis (na sua nota do dia seguinte à primeira volta) está preocupado: “Poderá Marine Le Pen ganhar? A resposta é sim. Qual é a probabilidade? Um pouco menos de 50%, mas não muito.”  Tal vitória não é desejável, acredita o banco, porque o resultado seria “as acções baixarem, e as acções europeias ficarem em sub-rendimento”. Mas, continua, “a extrema-direita (…) nunca esteve tão perto de ganhar as eleições presidenciais francesas”. Preocupação esta que faz com que a alta finança queira, antes de mais nada, salvar a Vª República para salvar o poder capitalista.

Quanto aos Republicanos – herdeiros do partido pilar histórico da Vª República, que une redes obscuras e intrincados serviços paralelos na cúpula do Estado: nesta eleição, praticamente desapareceram.

Sectores inteiros do aparelho de Estado pronunciaram-se publicamente contra Macron, no exército, na polícia e no sistema judicial.

Do lado do patronato, o comité executivo do Medef declara que “o programa de Emmanuel Macron é o mais favorável (…) ainda que tenha lacunas”. Mas o Medef não quer marcar Macron como o candidato da classe capitalista, por medo de dar azo a uma radicalização social contra ele. O editorial de Les Echos (12 de Abril) intitula-se: “Macron, assombrado pelo voto de classe”.

E no ponto de vista da classe trabalhadora? Durante os últimos seis meses, uma onda de greves sem precedentes viu trabalhadores em centenas de empresas formularem, com os seus sindicatos, reivindicações, sem esperar por autorização das cúpulas. Este movimento de rejeição que defronta o governo e a sua política repercutiu-se, à sua maneira, no dia 10 de Abril de 2022: por um lado, como abstenção maciça; por outro lado, em parte, como votação em Mélenchon, que foi mais poderosa do que as sondagens tinham previsto, embora uma grande parte dos eleitores de Mélenchon interrogados declarasse discordar dele e do seu programa.

Os trabalhadores utilizaram, em parte, o boletim de voto em La France insoumise para manifestar a sua vontade de pôr termo a Macron e a sua política. Não foram, nisso, bem sucedidos. Essa vontade chocou com a divisão. Quatennens, de La France insoumise, pode repetir quanto quiser que “A culpa é do Partido Comunista Francês”, os seus vários aliados podem insultar quanto quiserem quem não apelou a votar em Mélenchon, mas, na realidade, este 10 de Abril de 2022 marca o fracasso das estratégias assentes na divisão. À cabeça delas, a estratégia do próprio Mélenchon, que nunca deixou de vincar que: “Não queremos saber de discussões de cúpula, a unidade impor-se-á por baixo e varrerá tudo”.

A aspiração à unidade exprimiu-se na base, é verdade. Mas colidiu com a divisão da cúpula. O paradoxo é que os dirigentes da LFI, do PS e do PCF gerem juntos centenas de autarquias locais (alinhando, em grande parte, com a política de Macron). Puseram-se todos de acordo, em 19 de Março de 2020, quando Macron lhes pediu que votassem 343 mil milhões de euros para os capitalistas. Concordaram outras vez, nas semanas mais recentes, para votar, no Parlamento Europeu, pelo aumento vertiginoso dos orçamentos de guerra e se comprometerem a obrigar o povo a aceitar os sacrifícios impostos pela guerra. Nas eleições presidenciais, porém, escusaram-se a qualquer forma de unidade. E agora encontram-se todos outra vez à volta de Macron, uns a apelar abertamente a votar nele (caso dos dirigentes do PS, do PCF e dos Verdes), outros, como Adrien Quatennens, em nome da LFI, exigindo a constituição de um governo de coabitação com Macron.

E agora? Os partidos pilares da Vª República desapareceram praticamente. Há um risco elevado de que, nesta segunda volta, Marine Le Pen apareça como um recurso. Macron procura, pois, aliados à esquerda. De repente, descobre que o seu projecto de contra-reforma para adiar a idade da reforma para os 65 anos é negociável. Quem consegue acreditar nisso? Não obstante, Ian Brossat, o director de campanha do candidato do PCF Fabien Roussel, deseja que Macron “ouça a raiva do povo”. Quatennens, por seu lado, acha que “toda a responsabilidade pelo que acontecer na segunda volta recai no protagonista principal, Emmanuel Macron; ele que faça o que há a fazer”. Quatennens vai mais longe, manifestando o desejo de que a esquerda, encabeçada por La France insoumise, ganhe as eleições legislativas de Junho, inaugurando um período de coabitação. Coabitação de Macron como presidente e Quatennens (ou outro) como primeiro-ministro? A França viveu períodos semelhantes de coabitação entre Mitterrand, presidente “socialista”, e Chirac, primeiro-ministro de direita; ou entre Chirac, presidente de direita, e Jospin, primeiro-ministro “socialista”. Estes governos de coabitação levaram a cabo políticas ditadas pela classe capitalista e contra-reformas brutais contra a classe trabalhadora.

As tentativas duns e outros de remendar as coisas não podem mudar este facto: a Vª República e o seu princípio fundamental, o bonapartismo, já não são capazes de conter as contradições de classe. Isso preocupa Le Figaro: “A paisagem política devastada em que Macron poderá começar o seu segundo mandato é muito preocupante. O risco é que a frustração nascida da sensação de impossibilidade de alternância endureça um pouco mais a tensão que percorre o nosso país. Nesta divisão sociológica, será grande a tentação de reacender ‘a guerra de classe com classe, dos que nada têm contra os que têm’ (Tocqueville). O Chefe de Estado compreendeu-o, prometendo novas formas de governação. Na verdade, é todo o exercício da democracia que precisa de ser restaurado com urgência.” 

Restaurar o exercício da democracia”? Isso é permitir que a maioria imponha a satisfação das suas exigências mais fundamentais, não só quanto à forma da democracia, mas também quanto ao seu conteúdo social. Só um governo ao serviço da imensa maioria, a dos que, para viver, só têm o seu trabalho, só um governo que não hesite em atacar os privilégios (e as centenas de milhar de milhões) da pequena minoria de exploradores e especuladores, só um tal governo dos trabalhadores poderá restaurar a democracia, liquidando a Vª República. Para tal, convocará a Assembleia Constituinte soberana, apoiado no movimento de milhões e milhões em luta pelos seus direitos, mobilizados no terreno de classe. É ao serviço desta perspectiva que estamos a construir o Partido Operário Independente Democrático.