França, legislativas: A desforra da democracia

Há que reconhecer que ninguém tem a solução à que é, sem dúvida, a crise política e institucional mais grave que a Vª República conheceu.” O cronista do Figaro que assimse exprime está a dizer uma meia-verdade. Pois, para encontrar a solução, ainda é preciso começar por descobrir a causa.

A causa? A abstenção operária, popular, jovem, uma abstenção em massa que resistiu a todos os discursos moralizadores e de culpabilização, vindos da direita como da esquerda. O abstencionista, “esse desgraçado duma figa”, como diria La Fontaine, o abstencionista, a quem houve quem escrevesse cartas abertas para convencê-lo a deslocar-se às urnas, enquanto outros o apostrofavam, ainda na véspera do escrutínio: vota! Se não votares, depois não te queixes do que acontecer!

Esta abstenção sem precedentes fez com que, entre 10 de Abril e 12 de Junho, os principais candidatos às eleições presidenciais perdessem metade dos votos. Fruto disso foi a eleição de deputados que ninguém esperava por poucas centenas de votos, com votantes e abstencionistas acordes numa coisa: era preciso derrotar Macron! Macron foi indiscutivelmente derrotado. O Rassemblement national conseguiu pôr uma lança em África, mas sem – felizmente! – passar a ser maioria. E a Nupes, embora ganhasse muitos assentos, não conseguiu impor a coabitação nem elevar Mélenchon a primeiro-ministro, como era seu objectivo.

Abriu-se uma crise de primeira grandeza. Uma crise de regime, uma crise da Vª República. Mas que não nos venham dizer que é uma crise da democracia – porque é o contrário: no dia 19 de Junho, a democracia desforrou-se.

O que é a democracia senão o regime da maioria? E o que é a Vª República? O regime da minoria. Em sessenta e quatro anos de existência, a Vª República nunca parou de se meter com a Segurança Social e as pensões, os salários e o emprego e os serviços públicos, privatizando, desmantelando, desfazendo tudo o que é útil e necessário ao povo trabalhador e à juventude. Assim foi com todos os governos, de direita como de esquerda, ao passo que os dividendos pagos aos accionistas não paravam de engordar, ano após ano. No primeiro quinquenato de Macron, chegou-se a ver a Assembleia Nacional pôr à disposição dos capitalistas, por unanimidade, 343 mil milhões de euros, usados para despedir e especular.

Em bairros, cidades e regiões donde o emprego desaparece e onde os serviços públicos são desmantelados, vêem-se populações inteiras entregues a um sentimento de abandono e desespero. Alguns deixam-se tentar pela ilusão da extrema-direita, que, demagogicamente, argumenta nunca ter feito parte do governo. No entanto, para uma ampla maioria do eleitorado operário, popular e jovem, a abstenção afirma-se cada vez mais como acto político deliberado. É o espelho da desforra da democracia espezinhada. 

A situação preocupa de tal maneira o cronista do Figaro – o jornal mais apegado que se possa imaginar à preservação da ordem social instituída – , que ele intitula o seu artigo “Uma nova revolução institucional por definir”. Revolução institucional? Urgente, não reste dúvida. Só que, para ser eficaz, tem de preencher duas condições: a primeira é o poder passar da minoria para a maioria. Não interessa remendar as actuais instituições moribundas, interessa varrê-las. Numa palavra: convoque-se a Assembleia Constituinte soberana que permita aos delegados do povo, mandatados e revogáveis, lançar as bases de uma República autenticamente democrática em que o poder lhe pertença.

Esta condição é indissociável da outra: passar do poder da minoria ao poder da maioria também quanto ao conteúdo social de tal democracia. Desde domingo, todos os comentadores concordam que há que tomar medidas. Uns falam em aumentar os salários, outros em baixar o IVA ou congelar os preços… Sopra pelos salões institucionais e pelos corredores da Assembleia Nacional um vento de pânico: para salvar o regime, irá sem dúvida ser preciso largar umas migalhas aqui, umas migalhas ali.

Contudo, 26 milhões de abstencionistas, mais os milhões de eleitores da Nupes, exigem mais do que migalhas. Multiplicam-se as greves, que conseguem ou tentam conseguir aumentos de salários, defender o emprego e as condições de trabalho, evitar que a lei Dussopt seja posta em prática. Estas greves anunciam os poderosos movimentos que qualquer tentativa de atacar as pensões, o ensino público, a saúde, não deixará de provocar. 

A desforra da democracia abre alas na e pela luta de classe. Não visa salvar Macron e a Vª República – há quem actualmente o tente – , mas, bem pelo contrário, pôr cobro a Macron, à sua política e à Vª República. Concentra-se numa exigência: ruptura, agora, já!

O Figaro poderá não gostar, mas só haverá revolução institucional se for social e, portanto: operária!