Nº 30 d’A Internacional

Notas editoriais, Maio de 2023

Neste início de Maio de 2023, a humanidade assiste, inquieta, aos preparativos de uma nova etapa do confronto militar iniciado há quatorze meses no Leste da Europa entre a Rússia e a NATO.

O ataque ao Kremlin por drone, a 2 de Maio – sejam quem forem os mandatários – , as destruições de reservas de combustíveis do exército russo na Crimeia e na região de Krasnodar e os bombardeamentos russos de Kherson anunciam as grandes ofensivas da primavera.

Do lado da NATO e do imperialismo americano, têm sido destacados meios militares gigantescos para conseguir que a ofensiva ucraniana “chegue à vitória total”. O secretário-geral da NATO enumerou-os no dia 27 de Abril: “os aliados e parceiros do grupo de contacto dirigido pelos Estados Unidos enviaram para a Ucrânia 230 carros de combate, 1.550 veículos blindados e quantidades significativas de munições, equivalentes a 98% do material prometido para equipar nove brigadas blindadas”. Ao que acrescerão os sistemas anti-aéreos, os aviões de combate, a formação de dezenas de milhares de militares ucranianos e a presença em solo ucraniano de, pelo menos, 100 militares das “forças especiais” americanas, britânicas e francesas, conforme revelaram os documentos “top secret” objecto de uma fuga de informação no ministério da defesa dos EUA.

Do lado russo, o regime já não consegue mascarar a crise na cúpula. Resta-lhe a força para impor o reconhecimento das suas linhas de defesa, indispensável para os cem oligarcas multimilionários poderem continuar a saquear os imensos recursos do país. Contudo, o regime sabe que derrotas militares não lhe permitirão manter o tacão de ferro sobre o povo russo que lhe permite extrair a “carne para canhão” de que carece… daí o estado febril das cúpulas.

Os quatorze meses de guerra têm comprovado tragicamente as leis do capital e a pertinência da análise de Lenin do que é o imperialismo, estádio supremo do capitalismo.

A guerra imperialista começada em Fevereiro de 2022 não se limita aos enfrentamentos militares na Ucrânia.

Reflecte-se na militarização geral da sociedade, que provoca um salto das despesas militares no mundo: mais de 2 biliões (Brasil: trilhões – NdR) de dólares em 2022 (40% do total só os Estados Unidos), segundo dados do Stockholm international Peace Research Institute de finais de Abril.

Ela é, ainda, factor de desenvolvimento e agravamento de todos os conflitos que sangram os povos de todo o mundo, conforme reconhece The Economist (4 de Maio): “num mundo complexo, a guerra ganha terreno. Acesso ao poder e às riquezas, desafios climáticos, ingerências externas… a desordem planetária actual engendra conflitos de mais longa duração.

Ela reveste, ainda, a forma de guerra económica e comercial, em que o imperialismo americano procura esmagar os seus concorrentes europeus e japoneses. Assim, o Inflation Reduction Act (IRA) de Biden, que privilegia as multinacionais americanas à força de subsídios de centenas de milhar de milhões (Brasil: bilhões – NdT) de dólares, deixa meras migalhas às potências imperialistas da Europa e Japão. Petróleo, gás, energias “verdes”, semicondutores, armamento, cereais: nenhum mercado os concorrentes americanos lhes deixarão.

Isto não quer dizer que tenha surgido um “super-imperialismo” capaz de superar todas as contradições. O acordo celebrado no início deste ano pela Rússia e pela Arábia Saudita contra Washington, no âmbito do Organização dos Países Produtores de Petróleo, assim como a reconciliação entre os sauditas e os iranianos sob a égide da diplomacia chinesa… mostram que o imperialismo americano não é todo-poderoso.

A guerra na Ucrânia é também o prelúdio de outra guerra: a que a administração Biden e o Estado-Maior americano abertamente preparam contra a China. A preparação dessa guerra decorre da necessidade vital do sistema capitalista em crise de franquear o acesso aos mercados e recursos que lhe escapam. Estão nesse caso a economia chinesa, em que continua a dominar a propriedade do Estado – determinando a necessidade, para Biden, representante de Wall Street, de rachar essa propriedade do Estado. Tal agressão seria um golpe contra o povo chinês e contra os trabalhadores de todo o mundo. Por isso, e sem com isso dar o mínimo apoio político à burocracia parasitária do PC Chinês, os trabalhadores terão de se colocar, sem hesitação, do lado do povo chinês contra a agressão imperialista.

Guerra é, bem entendido, aquilo que todos os governos capitalistas metidos na guerra “no exterior” travam, sem tréguas, “no interior”, contra as suas próprias classes operárias. O vertiginoso aumento dos orçamentos militares, os lucros mirabolantes que se acumulam nos cofres da classe capitalista, o surto especulativo… requerem planos de inaudita brutalidade contra os trabalhadores, que esmaguem o valor da sua força de trabalho e as conquistas conseguidas pelas gerações anteriores.

Tudo isto é consequência da sobrevivência do regime falido assente na propriedade privada dos meios de produção, conforme escrevemos na carta de convite a uma conferência internacional, no início de Novembro de 2023, “pela reconstituição da IVª Internacional, pelo partido mundial da revolução socialista” (publicada no número 29 d’A Internacional).

Conforme este documento recorda, uma das causas da audácia dos governos capitalistas em arrastar a humanidade para um novo conflito mundial reside na união sagrada reinante, tanto nos países imperialistas como na Rússia, entre os dirigentes que se reclamam dos trabalhadores e os governos capitalistas. 

Quando não estão directamente metidos na torre de comando dos governos fautores de guerra, os principais partidos de “esquerda” estão alinhados com a NATO (tal como os pseudo-partidos “comunistas” alinham com Putin na Rússia). Recusam obstinadamente romper com os seus próprios governos, com as suas próprias burguesias e, por conseguinte, com todas as medidas anti-operárias e antidemocráticas que daí decorrem.

Esta “união sagrada” não se limita aos grandes partidos e organizações. Arrasta igualmente toda uma série de correntes – algumas das quais, aliás, se reivindicam fraudulosamente do trotskismo e da IVª Internacional – que, de tanto desculparem os aparelhos a que se agarraram, acabam por acertar o passo com eles no apoio ao seu próprio governo e à sua própria burguesia.

Assim, em França, quando Macron se prepara para pôr à votação uma Lei de Programação Militar (LPM) para 2024-30 orçada em 413 mil milhões (Brasil: 413 bilhões – NdT) de euros (aumento de 40%!), o deputado Jérôme Legavre, membro do grupo revisionista que provocou a cisão da IVª Internacional em 2015 (CCI/POI), acaba de apresentar emendas à LPM em conjunto com os seus colegas de La France insoumise.

Uma das emendas reivindica, por exemplo, “redesenhar a curva dos aumentos de dotações previstos para a lei de programação” e “programar, logo na primeira anuidade, um aumento significativo de 7 mil milhões (Brasil: 7 bilhões) das verbas, para compensar a inflação.”*

Temos, então, um deputado que diz que é “trotskista” e “revolucionário”, cujo jornal diz que é “contra a guerra” e “contra a NATO” a propor à Assembleia Nacional aumentar o orçamento militar mais do que a própria proposta de Macron propõe!

Outra emenda assinada por Jérôme Legavre reivindica os fornecimentos de armas francesas à Ucrânia no âmbito da NATO, acrescentando: “Vão-se fazer estudos da aplicação de uma verdadeira estratégia global de cessão de armamentos. Tal como no conflito da Ucrânia, é de temer que a França venha de novo a ter de ceder equipamento. (…)” 

Outra emenda de Legavre “aponta a hipocrisia do governo, ao falar constantemente de economia de guerra, mas sem se dotar seriamente de meios para isso.” Outra preza “o investimento de mais de 830 mil milhões (Brasil: 830 bilhões) de euros na facilidade europeia pela paz ou pela via de fornecimentos directos de material ao exército ucraniano.” 

Outra emenda ainda reivindica o domínio colonial das últimas possessões francesas (Guadalupe, Martinica, Guiana, Reunião, Mayotte, Polinésia, Kanaky), referindo que “a redacção original (do projecto de lei – NdR) sugere uma oposição entre “território nacional” e “ultramar”. Sendo os territórios ultramarinos parte integrante do território nacional, substitua-se o termo “nacional” por “metropolitano”.” Imagina-se, antes de 1962, um deputado da “extrema-esquerda” francesa a reivindicar a Argélia como “parte integrante do território nacional”?

Será preciso continuar? Esclareça-se, porém, o seguinte: nada tem de surpreendente que La France insoumise, um movimento cuja orientação política é uma mistura de reformismo social-democrata e de “populismo” negacionista das fronteiras de classe, defenda uma política assim. Assinale-se, de passagem, que as emendas dos deputados do Partido “Comunista” e do Partido “Socialista” nada têm a invejar às da LFI.

Mas um deputado que ousa dizer-se “comunista internacionalista” associar-se a “reivindicações” deste jaez é uma renúncia aos princípios mais elementares. É galgar um novo degrau na capitulação ao seu próprio imperialismo, exactamente quando milhões de trabalhadores e jovens en França se levantam para correr com Macron e a sua política. 

Vê-se o mesmo que se viu em 1914: que a guerra imperialista baralha e volta a dar as cartas. Em oposição a estes pseudo-revolucionários da palavra, social-patriotas nos actos, há militantes, correntes e grupos de várias origens a procurar – em muitos casos, nas mais difíceis condições – defender uma posição operária internacionalista consequente.

É a esses camaradas que a carta de convite para a conferência internacional de Novembro de 2023 se dirige. Tanto mais que, em contradição com a marcha para a guerra, a situação mundial se caracteriza por uma intensa luta de classes, manifesta em todos os continentes. No coração da Europa, por exemplo, há guerra na Ucrânia; mas há também greves incessantes na Grã-Bretanha, greves de aviso na Alemanha, manifestações em Portugal, a revolta da juventude na Grécia e a luta de classes em França, que atingiu uma profundidade sem precedentes nas últimas décadas.

Para o Comité de Organização pela Reconstituição da IVª Internacional (CORQI), tanto as ameaças de conflito mundial generalizado como as lutas de classes em andamento suscitam, com urgência, a necessidade de reagrupamento das forças da vanguarda revolucionária.

Por isso os militantes, grupos e organizações do CORQI em 31 países tomaram a iniciativa da conferência internacional do mês de Novembro. Como os nossos leitores lerão, nestas páginas, ao tomarem conhecimento dos primeiros intercâmbios e contribuições suscitados pela “carta de convite”, não nos interessa pôr o nosso programa e a nossa bandeira como condição para a discussão e acção comum.

Não ignoramos as diferenças políticas nascidas da história do movimento operário e das suas crises. Não escondemos que, no que nos diz respeito, o Programa da IVª Internacional continua a ser um instrumento indispensável para a construção da Internacional Operária revolucionária de que os trabalhadores precisam para vencer.

É por isso mesmo que queremos fazer esta discussão e elaboração comum com todos os que não renunciam à necessidade de organização independente da classe trabalhadora, que não renunciam à luta pela ruptura com a burguesia, à luta histórica do proletariado pelo socialismo, que rejeitam a união sagrada atrás dos governos fautores de guerra.

A todos esses, os militantes do CORQI propõem a abertura de uma discussão na mira de, em conjunto, se encontrarem caminhos e meios para avançar no agrupamento das forças da vanguarda revolucionária internacional.

5 de Maio de 2023

*Todas as emendas podem ser consultadas na página da Assembleia Nacional:
https://www.assemblee-nationale.fr/dyn/16/amendements?dossier_legislatif=DLR5L16N47509&examen=EXANR5L16PO59046B1033P0D1&auteur=PO800490