Na Rússia como na Ucrânia
A guerra entre a Rússia, de um lado, e a Ucrânia e a NATO, do outro, que já leva quinze meses, produz um cortejo de massacres, destruições e ataques brutais contra os direitos dos trabalhadores, mas não só. Serve também de ocasião para militarizar a sociedade e para uma empresa de lavagem ao cérebro “patriótica” e de arregimentação militar da juventude. Andrei Rudoi, antigo presidente do sindicato independente dos professores da Rússia, hoje exilado político e militante contra a guerra e pelo socialismo, transmitiu-nos o material aqui publicado, inicialmente difundido no canal YouTube Vestnik buri.
Programas escolares rescritos
Na Rússia, os programas escolares têm sofrido modificações significativas. Nos territórios da Ucrânia Oriental anexados pela Rússia, a língua ucraniana saiu das disciplinas obrigatórias. Os manuais escolares foram, de resto, caricaturalmente saneados de toda e qualquer referência à Ucrânia. Considerando que a história da Rússia começou em Kiev, no século IX, onde, num dos manuais, antes se lia que “o príncipe Vladimir baptizou os habitantes de Kiev”, lê-se agora que “o príncipe Vladimir baptizou os habitantes da capital.” Os manuais da sétima classe fazem desaparecer a palavra “Ucrânia”: fala-se da “margem esquerda do Dniepre”, das “terras da Rússia Ocidental”…
“Reforçar os valores espirituais”
Depois de mobilizar e mandar para a frente 300 mil homens, o regime de Putin inaugurou uma nova disciplina escolar obrigatória, intitulada: “Discussão dos temas importantes”; introduziu igualmente a continência à bandeira e o canto do hino nacional todas as segundas-feiras de manhã. O estudo visa ao “reforço dos valores espirituais e morais tradicionais da Rússia” e “promover o patriotismo”. O ministério envia videos de propaganda patriótica assaz grosseira. A aplicação das directrizes vindas de cima depende muito dos responsáveis locais, dos directores e, até certo ponto, dos professores. Há muitos que aplicam as directivas sem entusiasmo, há até quem as sabote pura e simplesmente. Porém, quando a administração conta nas suas fileiras um ou mais “ultrapatriotas”, depressa as coisas se tornam infernais para o pessoal e os alunos (leia-se a caixa com testemunhos de professores e alunos, recolhidos por Andrei Rudoi).
Podem os pais recusar a “lavagem ao cérebro”?
Os pais conseguem muitas vezes chegar a um entendimento com os professores, pouco motivados. Contudo, por vezes sujeitam-se à repressão, como no caso de uma escola na Basquíria, onde houve pais ameaçadas de sanção pelos serviços sociais. A história mais mediatizada foi a de Alexei Moskaliov e sua filha Macha, na região de Tula. Macha, de 12 anos, fez um desenho anti-guerra na aula, provocando a histeria da professora e do director, “patriotas”, que denunciaram a criança e o pai às autoridades policiais. Ao fim de meses de “inquérito”, a miúda foi mandada para um orfanato, e o pai preso, condenado a dois anos de prisão e ameaçado de perda dos direitos parentais.
Arregimentação militar da juventude
As escolas passaram a ser o cenário de uma série de actividades de arregimentação militar: é lá que se desenvolve a Iunarmia (exército da juventude), organização paramilitar que põe os jovens a desfilar em uniforme e que muitos alunos apelidam ironicamente de “Juventude Hitleriana”. Organizam-se feiras e colectas obrigatórias para apoiar as forças armadas. Organiza-se o culto da “carteira do herói”, em memória e honra dos antigos alunos mortos em combate. Na pequena república pobre do Daguestão (Cáucaso do Norte), em finais de 2022 já se contavam mais de mil carteiras destas. Os alunos têm o dever de escrever cartas aos soldados da frente. Ora, calha o sistema não acertar, como aconteceu na escola n° 22 de Ekaterinburgo, onde um dos alunos, em vez de copiar o “modelo” distribuído, escreveu: “Volta para casa, soldado, não sejas mau para ninguém. Mais vale morrer que matar.” Aluno e professora foram sancionados. Os jardins infantis não escapam às actividades patrióticas e militares. No jardim infantil “Solnychko”, em Triapino (Basquíria), ficou-se a saber que “as crianças aderem à acção pan-russa “Pela Rússia, por Putin””, fabricando objectos artesanais para os soldados. Em Uiar (região de Krasnoiarsk), as crianças assistem à desmontagem e montagem de fuzis de assalto. Exemplos destes não faltam.
E na Ucrânia?
Na Ucrânia, já antes da guerra os programas escolares estavam atulhados de ideologia nacionalista e de “heróis nacionais” altamente duvidosos. Em sintonia com o seu homólogo russo, em Setembro de 2022 o ministério ucraniano da Educação Nacional reformulou os programas segundo “uma nova visão patriótica”. Segundo o ministério, é caso de “reforçar a educação nacional patriótica”, de molde a “formar um Ucraniano Novo, cuja conduta se baseie nos valores nacionais e europeus”. Linguagem de sinistra memória. Atulham os alunos ucranianos com o termo, puramente propagandístico, de “ruscismo”. Este neologismo, que aglutina as palavras “Rússia” e “fascismo”, foi inventado por uma ideóloga do regime Zelensky, Larissa Iakubova. Enfiado com toda a seriedade nos manuais escolares, ficará por muito tempo na cabeça dos alunos.
Aulas animadas por polícias
A disciplina obrigatória “Defesa da pátria” foi ampliada. Explica um liceal: “Temos tido aulas animadas por um oficial da polícia. Ele explica-nos que é proibido queixar-se: “Não estorvem, estamos em guerra!” Os poetas russos foram tirados das escolas, as escolas russas praticamente fechadas. Não se tolera contradição nas aulas de história (…). Isso desperta sentimentos anti-russos e anticomunistas em muitos dos meus condiscípulos.” A vida escolar é ritmada por iniciativas “patrióticas”: colectas, tômbolas, tecelagem de redes de camuflagem para as forças armadas.
O impasse do nacionalismo e do chauvinismo
Andrei Rudoi afirma, em conclusão, que “o governo ucraniano precisa de manter a população presa aos mitos nacionalistas, enquanto vai vendendo o país aos capitalistas ocidentais. O governo russo também precisa de uma geração inteira disposta a dar a vida, sem queixas, por guerras cujos benefícios serão gozados pelos que não sofrem nem com a vida nas trincheiras nem de privações (…). O nacionalismo e o chauvinismo só são úteis aos governos, para os povos são um beco sem saída. Os povos da Rússia e da Ucrânia só encontrarão a amizade e a cooperação livrando-se destes regimes que nos lançam uns contra os outros.”
Palavras de professores russos
“Para os colegas, estas aulas patrióticas obrigatórias são mais um frete. Se bem que tenha visto algumas fanáticas a exporem o seu entusiasmo pela guerra aos alunos da primária, colegas dessas quase já não há, desde que os maridos foram mobilizados e enviados para a frente.”
“Nós sabotamos essas aulas. Eu tento manter-me neutra. Mas tenho de ter cuidado, porque um dos meus alunos é um fanático. Os outros miúdos troçam dele: um pôs-se a cantar o hino ucraniano, outro disse-lhe que Prigojin (o patrão da empresa de mercenários Wagner – ndr) era um assassino. Resultado: o pai fez um pé-de-vento, e os alunos foram chamados para uma conversa disciplinar.”
“A nossa escola está num bairro popular: 48 % dos alunos são de famílias monoparentais, 34 % de famílias pobres e 20 % de imigrantes da Ásia central. Ora, a tal “Grande Rússia”, assim… Os professores não se coíbem de dizer que a guerra actual é injusta e que o poder está nas mãos dos oligarcas.”