Posição da “União dos Marxistas” russa sobre os acontecimentos com o grupo Wagner

A 24 de junho de 2023, o mundo inteiro assistiu ao motim dos militares da empresa militar privada (EMP) Wagner, subordinados do homem de negócios russo Ievgueni Prigojin. Nesse dia, milhares de homens armados começaram por tomar o quartel-general do Distrito Militar do Sul, que coordena as tropas na zona da Operação Militar Especial, marchando depois em direcção à capital russa. Num dia, percorreram mais de 700 quilómetros quase sem obstáculos. É mais do que do Eurotúnel a Glasgow, do que de Saarbrücken ao Golfo da Biscaia, do que de Nápoles a Milão.

Não temos conhecimento fiável dos motivos que levaram Prigojin a decidir actuar agora, dos seus objectivos e do verdadeiro balanço dos acontecimentos: se Prigojin conseguiu o que queria ou se perdeu a partida. Porém, em si mesma, a rebelião mostra mais uma vez a profundidade da crise do sistema político vigente.

Nos últimos 30 anos, todas as esferas da sociedade russa foram encarriladas no capitalismo. O resultado foi a redução a metade do número de hospitais e clínicas, a degradação do sistema de ensino, a destruição de parte significativa da indústria e a reforma das pensões. E o ataque do capital aos direitos laborais dos cidadãos continua.

Nem as Forças Armadas da Federação Russa foram poupadas a estes processos. Nos anos 90, no tempo de Boris Ieltsin, o exército encontrava-se em declínio absoluto. Não se renovava o armamento, retinham-se salários, floresciam relações extra-regulamentares (https://en.wikipedia.org/wiki/Dedovshchina(link is external)). Nos círculos militares, Vladimir Putin é visto como um salvador por ter reafectado algumas verbas e tratado de modernizar o exército. Apareceram novos submarinos, aviões, armamentos. Tudo isso aumentou o prestígio das forças armadas. Contudo, a par do aumento do financiamento, o exército e a indústria militar tornaram-se cada vez mais corruptos. Em 2008, o Ministro da Defesa, Serdyukov, lançou uma reforma que cortou nos quadros de comando e reagrupou as unidades militares. Havia desvios flagrantes de verbas orçamentais, actividades de faz-de-conta. As compras faziam-se a preços inflacionados. O exército deixara, entretanto, de gastar dinheiro em formação. Nas condições do regime de Putin, a seleção dos comandantes ficou pervertida: as promoções e a carreira passaram a depender de laços familiares, da capacidade de dar notícias agradáveis, de demonstrações de lealdade – e não de qualidades profissionais e habilitações. Formou-se uma camada de elite que fazia grandes fortunas com negócios ligados ao exército. Por exemplo, a empresa Concorde, propriedade de Ievgueni Prigojin, ganhou 80 mil milhões de rublos em 2022 só com o fornecimento de, e prestações de serviços com, provisões ao exército.

A Rússia ganhava, entretanto, vulto imperialista. Empresas como a Gazprom, a Lukoil e a Alrosa investiam cada vez mais em países africanos e do Médio Oriente. Tornava-se fundamental proteger os investimentos: era necessário exercer pressão sobre os governos locais ou, pelo contrário, defendê-los contra golpes de Estado. Criaram-se, para esse efeito, empresas militares privadas. Estas empresas atraíam pessoal do exército. Como os seus resultados traziam lucros, prestava-se grande atenção à formação e equipamento do pessoal. Uma dessas empresas era a Wagner.

Paralelamente, Ievgueni Prigojin pôs de pé uma empresa de informação, que incluía sites de notícias, páginas e canais no Vkontakt, Twitter, YouTube e Telegram, bloguistas (alegadamente) independentes e uma rede desenvolvida de bots. Aliás, se, em 2014, os bots eram pessoas que trabalhavam segundo manuais, o que se vê actuar em 2023 é já, essencialmente, inteligência artificial, programada por programadores.

Na primavera de 2022, a Rússia inicia a guerra na Ucrânia. A campanha militar era para ter sido rápida; porém, a má formação, a desinformação e a má preparação dos comandos fizeram com que a Rússia não conseguisse obter resultados significativos nas regiões de Donetsk e Lugansk e que as unidades que chegaram a Kiev vindas da Bielorrússia fossem derrotadas e repelidas. As autoridades russas decidiram recorrer à Wagner e a outras empresas militares privadas. Foi então que, de chefe de um negócio obscuro, Ievgueni Prigojin passou a actor importante no teatro de operações militares.

Milhares de milhões de rublos começaram a manar directamente para a Wagner à margem do Ministério da Defesa russo. A rede de media de Prigojin ia trabalhando no plano da informação. A certa altura, os seus activos informativos começaram a atacar o Ministério da Defesa e a apresentar os da Wagner como a única força pronta para o combate na frente. A tomada de Soledar (cidade de 3,23×9,25 km) e de Bakhmut (7,5x5km) foram apresentadas como vitórias espantosas. Ao mesmo tempo, o exército russo abandonava a região de Kharkov e a cidade de Kherson, o que os canais de Prigojin destacaram como grave fracasso, resultado da falta de profissionalismo dos comandos. O próprio proprietário da Wagner começa a publicar na rede mensagens de vídeo, gravadas com “wagnerianos” mortos em pano de fundo. Prigojin permite-se críticas duríssimas à cúpula militar do país, fala de falta de projécteis, de traição. De fora deixa as enormes perdas da Wagner, consequência da táctica de “ataque em carne para canhão”, os casos de ataque de mercenários a tropas regulares das Forças Armadas russas, que se ouvem de participantes comuns na operação especial, e o linchamento e matança de civis pacíficos na zona da operação militar especial.

Em maio de 2023, o confronto entre o Ministério da Defesa e a Wagner atinge o auge. As altas patentes militares exigiram que todos os participantes na operação especial assinassem contratos com o Ministério da Defesa, o que implicava que a Wagner ficasse sem enormes entradas de fundos. Pode ser que essa não seja a única razão para o motim – não conhecemos todos os meandros dos bastidores da política russa. Há rumores de funcionários militares estarem a tentar substituir a Wagner por unidades do exército russo em África; de pressões sobre a família de Prigojin; e das suas ambições políticas.

O motim propriamente dito durou 24 horas. Na manhã de 24 de junho, Vladimir Putin fez uma declaração sobre o motim, equiparando-o a uma traição e comparando-o com os acontecimentos de 1917. As unidades da Wagner capturaram Rostov do Don. Os militares não ofereceram resistência aos amotinados. A Wagner dirigiu-se para Moscovo, contornando as cidades grandes. No caminho, os seus combatentes destruíram pelo menos seis helicópteros e um avião. As autoridades russas ficaram completamente desmoralizadas. Só houve os primeiros confrontos entre militares e os revoltosos no território da região de Voronej. Barreiras montadas à pressa mostraram-se completamente ineficazes, e só na segunda metade do sábado as autoridades começaram a destruir estradas, conseguindo atrasar um pouco o equipamento ligeiro dos mercenários. Quando faltavam pouco mais de 200 quilómetros para Moscovo, as unidades da Wagner detiveram-se subitamente. Era o resultado de negociações secretas entre as chefias do país e Ievgueni Prigojin. O público não sabe o que se negociou. A Rússia não tem instituições democráticas, tem uma sociedade civil sub-desenvolvida e ninguém tem maneira de pedir contas às autoridades. A longa alienação da sociedade russa de toda a possibilidade de influenciar o que se passa ao nível do Estado, a proibição de quaisquer iniciativas fora do controlo das autoridades e a perseguição policial da manifestação de opiniões redundaram numa atitude marcadamente apolítica entre a população. Em suma, a sociedade reagiu com pouco interesse à perspectiva de um golpe militar na capital, com estupor ou indiferença: não se registou nem um ensaio que fosse de saída colectiva para a rua em apoio de alguma das partes. As massas não se juntaram nem para defender o regime vigente nem para saudar os rebeldes. 

No ponto de vista político, o resultado dos acontecimentos foi uma derrota tanto para o governo de Putin como para Prigojin. Durante anos, ninguém se atrevera a desafiar o regime abertamente – e, de repente, uma rebelião eclode, e vem ao de cima a indecisão e inércia das autoridades. O sistema seleccionava os mais leais e os menos empreendedores. Resultado: os responsáveis pelas decisões mais importantes ficarem transidos de medo de tomar qualquer medida em defesa do sistema. Até Prigojin, porém, que no espaço mediático se retratava como defensor dos soldados e paladino da justiça, deixou bem à mostra de todos que só estava interessado no seu próprio benefício. Tirando umas frases feitas sobre a necessidade de mudança das chefias militares, não propôs nenhuma alternativa que se percebesse ao poder de Putin. Exprimiu dúvidas sobre a justificação para a guerra, enquanto ia falando da necessidade de mobilizar todas as forças e militarizar a indústria para poder continuar a operação militar especial. Tal posição não podia dar azo a grande optimismo em vastos sectores do exército e da sociedade, cansados de ano e meio de guerra. Transpareceu uma verdade torpe: uma empresa militar privada sustenta-se à custa de dinheiro do Estado, um motim militar aberto não foi objecto de repressão legal (no momento em que se escreve, o caso contra Ievgueni Prigojin por apelo a golpe de estado militar foi arquivado). Mais: o instigador da revolta é mandado para o estrangeiro sob condições desconhecidas. Entretanto, ninguém será punido pela morte de 15 membros das forças armadas russas durante os acontecimentos do sábado, 24 de junho.

Para a oposição, o dia foi um teste de carácter. O antigo oligarca Khodorkovsky e a associada de Navalny, Lyubov Sobol, apoiaram publicamente as acções de Prigojin. A oposição social-chauvinista (KPRF, RKRP e outros) solidarizou-se com as autoridades e condenou a “traição”. As organizações comunistas viram a fragilidade dos meios de comunicação e deram uma vez mais pela modéstia da sua influência sobre as massas. Antes da guerra, o nosso principal problema estava em estabelecer laços com a sociedade – trabalhadores, estudantes, apoiantes das ideias socialistas – , e este rumo tem-se mantido, mesmo ao fim de 16 meses de guerra. Hoje, a tarefa que se nos antolha é a de criar formas alternativas de promover essas ligações. Estamos habituados a trabalhar no conforto da Internet, a comunicar através de salas de chat e a agitar através de videoblogues e artigos. Mas os meios de comunicação electrónicos são extremamente frágeis e não criam o nível de confiança exigido. Cumpre-nos agora conhecer melhor os nossos apoiantes e aprender a interagir nas situações mais extremas.

Actualmente, as organizações comunistas do mundo estão divididas, não têm peso político significativo nos respectivos países e não conseguem agir como força organizada unida. Nós propomos que se trabalhe pela criação de um centro de coordenação comum das organizações que se situam no terreno da luta de classes, a fim de aumentar a sua influência no mundo e elaborar conjuntamente posições e planos para resistir ao reforço das forças reaccionárias. 

Só juntos, pela acção colectiva, poderemos alcançar a paz e a justiça no interesse da maioria. A escolha é “socialismo ou barbárie!”.