Os bancos centrais, estados-maiores da guerra do capital contra o trabalho
O fórum sobre a política de taxas de juro do Banco Central Europeu (BCE), realizado em Sintra no fim de Junho, deu azo a muito comentário, adornado de mais ou menos pontos de exclamação e estados de alma.
Foi um acontecimento indiscutivelmente importante. O BCE é, juntamente com a Comissão Europeia (e muito mais do que o governo e a Assembleia da República), um dos principais órgãos de governo deste país e dos outros países subordinados aos tratados da UE. O que se passou e disse em Sintra tem, portanto, indiscutível impacto na vida dos trabalhadores portugueses
A chefe do BCE, Lagarde, disse isto, com brutal clareza e à transparência da linguagem contorcida dos banqueiros e economistas: esta inflação não foi causada pelos salários. Mas isso, acrescentou, não interessa nada: de agora em diante, o perigo é os trabalhadores quererem recuperar a parte dos salários que perderam, exigindo aumentos iguais ou superiores à inflação. E, por isso, mais disse, enquanto o Banco Central não ficar convencido de que os governos torcem o braço aos trabalhadores o tempo suficiente para os salários continuarem a baixar, a política monetária irá continuar a estrangular a economia, a provocar falências, despedimentos e despejos.
A violência das declarações da presidente do BCE foi tal, que até António Costa se sentiu obrigado a distanciar-se – da boca para fora, bem entendido. Ele sabe muito bem que, como Vítor Constâncio, ex-vice do BCE e governador do Banco de Portugal, disse, “é bem conhecido que críticas públicas ao BCE, mesmo quando feitas por importantes autoridades políticas, não têm qualquer efeito sobre as decisões de política monetária”(Expresso, 4 de Julho). Ou Costa está disposto a romper com o BCE e a UE (não está…), ou nada pode fazer. E é por estar farto de o saber que mostra “rebeldia” para as câmaras. Quem manda não é ele.
Em Sintra, além dos discursos oficiais, houve também um fórum dos quatro presidentes dos grandes bancos centrais do mundo (BCE, Reserva Federal americana, Banco de Inglaterra, Banco do Japão). Foi ainda mais esclarecedor.
Apesar das frases recheadas de termos “técnicos”, os chefes da Reserva Federal, Powell, do BCE, Lagarde, e do BdI, Bailey, disseram com todas as letras o que tinham para dizer: sim, talvez esta política cause uma crise económica; sim, talvez provoque desemprego; sim, talvez muita gente perca a habitação; mas sabem: a alternativa seria ainda pior….
O foco deles todos é o “mercado de trabalho”. Está, disseram todos, muito “apertado”. Em linguagem de economista, isto significa que há demasiado poucos trabalhadores desempregados e, portanto, há risco de os salários aumentarem. Ora, disse Lagarde, isso não pode ser: os salários têm de descer (“subir menos do que a inflação” é a maneira delicada de o dizer). Enquanto não descerem, continuamos a aumentar os juros até que mais empresas fechem e despeçam mais trabalhadores…
São duas as maneiras de “aliviar” o mercado de trabalho no capitalismo.
Uma é reduzir a procura de trabalho pelos patrões. Com os juros altos, vão à falência as empresas que não conseguem repercuti-los suficientemente nos seus preços, porque perderiam mercado para empresas mais fortes; e que também não conseguem baixar os salários que pagam, pois perderiam os trabalhadores. Mais empresas fecham, mais desempregados há. E os trabalhadores, para encontrarem emprego ou manterem o que têm, são obrigados a aceitar salários mais baixos.
A outra maneira de “aliviar” o mercado de trabalho é aumentar a oferta de trabalho, ou seja, a concorrência entre os trabalhadores que procuram trabalho. Lagarde mostrou-se particularmente preocupada com o sector dos serviços, onde, diz ela, a “produtividade é baixa” e o trabalho menos qualificado, e a única maneira de “contrariar a inflação” é baixar ainda mais o “custo do trabalho”… ou seja, os salários. Não é por acaso que, na Europa e nos EUA, se está a assistir à “importação” maciça de mão de obra pouco qualificada de países atrasados em que há muito desemprego e salários muito baixos. Os patrões recorrem, para isso, em muitos casos, a redes de tráfego de seres humanos. É uma maneira de “unificar” a “oferta” de trabalho no mercado mundial, igualando os níveis salariais. Se os trabalhadores dos países desenvolvidos são postos em concorrência directa com os de países atrasados pelos mesmos empregos, aumenta a pressão para os salários, nos países industrializados, baixarem.
Obedeceu, aliás, a essa mesma lógica a “deslocalização” da indústria europeia e americana para a China a partir dos anos noventa, com base num acordo entre a Casa Branca e a direcção do PC Chinês. Com os trabalhadores da indústria americana e europeia a terem de concorrer directamente com a força de trabalho chinesa, muito mais “barata”, os salários industriais nas metrópoles imperialistas baixaram, e o aumento estrepitoso dos lucros dos grandes grupos económicos durante duas décadas conseguiu-se “quase sem inflação”.
A política monetária actual dos bancos centrais é muito simples e para isso serve a espora dos juros: espicaçar o patronato no seu todo, como classe, a atacar os trabalhadores; e forçar os governos recalcitrantes a emoldurar esse ataque com políticas
– que empurrem sectores do capital para a falência ou para reduzirem drasticamente os investimentos – aumentando, assim, o desemprego e a “pressão” à baixa dos salários, ainda que à custa de uma crise económica; e
– de repressão salarial directa, desmontando direitos dos trabalhadores legalmente constituídos na legislação laboral, assim como as caixas de pensões e os sistemas de saúde, ensino e habitação públicos, que são, afinal, a componente diferida e colectiva do salário da classe trabalhadora.
Se nada disto for suficiente, restará atacar directamente os meios históricos de defesa organizada do movimento operário, os seus sindicatos e partidos. Esta opção está sempre em reserva para quando o resto falha, e é a tarefa para que se preparam os partidos e bandos de extrema-direita em ascensão por toda a Europa.
Os bancos centrais não são centros de intervenção científica e neutra na economia, para o “bem comum”. São armas fundamentais na luta de classe do capital contra o trabalho. Por isso lhes foi conferida “independência” de eleições e outras maçadas democráticas.
A linguagem que usam pode parecer “técnica” e “económica” – mas não é. É linguagem da guerra: “Avante, ao ataque dos salários, com todo o poder de fogo! Quem hesitar, será atropelado!”.