O capitalismo e o lucro, obstáculo intransponível para resolver a questão da habitação digna e acessível para todos

No dia 30 de Setembro, milhares e milhares de manifestantes, em dezenas de cidades do país, saíram à rua para exprimirem a sua revolta com a destruição do direito dos jovens e dos trabalhadores a uma habitação condigna – hoje em dia, simplesmente, a uma habitação.

Comecemos por desfazer qualquer ilusão: seja qual for o ângulo de abordagem adoptado -– planeamento territorial, sociologia, arquitectura, urbanismo, ciência política, etc. – não existe, sob o capitalismo, solução para a questão da habitação digna e acessível para todos.

Políticos “liberais” e quejandos prometem resolver o problema das rendas altas ou dos juros inflacionados (no empréstimo para compra de habitação) com soluções tecnocráticas para baixar ou estabilizar o custo da habitação: rendas controladas, apoios estatais, incentivos fiscais, dinamização do mercado de arrendamento pelo Estado, etc. Há quem, de boa ou, mais provavelmente, de má fé encare estas “soluções” como única perspectiva de alívio para a crise da habitação.

Não é que não seja possível impor medidas como o controlo das rendas ou a habitação social e melhorar as condições de vida das classes mais desfavorecidas. Aconteceu, por exemplo, a seguir à revolução de 1974 – mas aconteceu porque as massas trabalhadoras mobilizadas o impuseram ao capital com a relação de forças dos factos consumados. E tudo voltou para trás quando o capital voltou a impor a sua lei.

Enquanto marxistas, apontamos claramente para o “elefante na sala”: o capitalismo nunca poderá satisfazer as nossas necessidades de habitação digna e acessível. Em capitalismo, tudo depende do motivo do lucro dos proprietários. Pode-se repetir à saciedade que a habitação  é um “direito básico”. A própria Constituição o diz. Só que a única pergunta a que o “mercado livre” serve para responder é outra: o que mais enriquece, a cada momento, investidores, proprietários da terra e senhorios?

Na sociedade capitalista, a terra e o parque habitacional são mercadorias, bens e serviços que podem ser comprados, alugados e vendidos com lucro. Como com todas as mercadorias sob o capitalismo, o que rege a produção e a manutenção da habitação é o lucro.

Podemos ilustrar o que dizemos com o caso português – agora na ordem do dia do debate político nacional, tal a intensidade com que a crise da habitação actualmente se apresenta no país, obrigando até o governo a aprovar um pacote legislativo especial.

O problema da habitação tem sido, em Portugal, uma constante ao longo dos últimos 110 anos, pelo menos. Nenhum governo fez, alguma vez, uma política que apresentasse resultados concretos e coerentes com as necessidades das populações – com a referida pequena, mas significativa, excepção, que duraria apenas cerca de 2 anos.

Referimo-nos às operações SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local) em 1974/75, no pós 25 de Abril.

O 25 de Abril tinha herdado do Estado Novo, entre muitos outros, um dramático problema de habitação, exposto nos “bairros de lata” que rodeavam algumas das principais cidades do país em consequência das migrações “do campo para a cidade”.

No contexto do que depois se chamou o PREC (Processo Revolucionário em Curso), o arquitecto Nuno Portas, então Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo do I Governo Provisório, fundou o projecto SAAL, com o objectivo de apoiar as autarquias e as populações interessadas na resolução dos problemas da habitação das populações mais carenciadas, que viviam em barracas e bairros de lata. O projecto envolveu arquitectos e população numa iniciativa única e revolucionária, que, enquanto dava casas aos mais pobres, em alguns casos construídas pelos próprios, afirmava a arquitectura portuguesa no estrangeiro como nunca antes.

O que tornou possível este acontecimento único? O processo revolucionário, que varreu o poder estabelecido e permitiu às classes desfavorecidas e aos técnicos que se envolveram no projecto tomar consciência da sua força e capacidade de decisão e nele porem toda a sua energia.

A contra-revolução viu nessa consciência e nessa acção o perigo que encerrava para os interesses da propriedade privada; assim que o período revolucionário “esfriou”, um despacho encerrou o processo SAAL, a 27 de Outubro de 1976, minimizando os seus resultados. E, no entanto, estes persistem até hoje, como se vê na foto do Conjunto Habitacional da Bouça, no Porto, da autoria de Siza Vieira.

Desde então, e até hoje, os governos do capital nada fizeram que se pudesse comparar ao que o SAAL conseguiu em tão curto período e com o restritivo controlo orçamental que as condições económicas da época impunham.

Vão, sim, fazendo o seu papel de adoptar “medidas” de “ajustamento dos incentivos” aos proprietários, para estes fazerem mais disto ou mais daquilo para obterem mais lucro; mas sem políticas (públicas), pois “é preciso deixar os mercados funcionarem”.

Tal é bem expresso, todos os anos, nas dotações orçamentais dos sectores e serviços sociais, onde, do miserável quadro geral, um sector se destaca ainda mais pela negativa: o da habitação (ver gráfico abaixo, que mostra o peso relativo de várias políticas públicas na despesa total do país, o PIB). O que mais é, um estudo de 2015, citado por Gonçalo Antunes, notou que quase três quartos desse investimento mínimo em políticas de habitação se destinou a apoios à pessoa, especialmente bonificações de juros no crédito à habitação, e apenas um sexto em programas de promoção directa. A política de assistencialismo aplicada à habitação.

Assim, o parque de habitação pública português corresponde a ínfimos 2% do total, uma irrisória fracção, mesmo em comparação com os países capitalistas europeus mais industrializados. O Pacote Mais Habitação do governo Costa não serve outro propósito que não seja manter este estado de coisas.