Carta Aberta aos Nossos Aliados Judeus

Na fotografia acima: milhares de judeus americanos ocupam o Capitólio americano, exigindo o cessar-fogo imediato e dizendo: “em nosso nome, não!

Carta subscrita, à data de 8 de Novembro,  por mais de 14 mil palestinianos

Durante centenas de anos, o colonialismo instrumentalizou a identidade como arma para justificar as suas atrocidades. Hoje, o projecto colonial dos colonos sionistas reivindica ser uma empresa judaica e a luta de libertação palestiniana, uma empresa anti-semita. É por isso que vós, nossos queridos aliados judeus, podeis fazer diferença – e por isso vos dirigimos esta carta. Em primeiro lugar, agradecemo-vos as posições corajosas que tendes tomado, não só em palavras, mas também em actos. O que, nas últimas semanas, mais nos tem doído, a nós, palestinianos, não são as bombas do inimigo – vivemos sob ocupação há 75 anos, conhecemos bem os seus horrores. O que mais nos tem afligido é o silêncio dos silenciosos. No meio desta quietude, as vossas vozes, os vossos gritos, como os de inúmeros outros, têm-nos aquecido o coração. Mais importante ainda: dizerdes “em meu nome, não!” é mais do que uma posição moral. Tirando a máscara à dupla mentira de confundir colonialismo e judaísmo e de acusar o movimento de libertação de anti-semitismo, atinge em cheio a alegada “legitimidade” do sionismo. É, pois, crucial.

As corajosas posições políticas que tomastes estão do lado da verdade. Durante centenas de anos, judeus viveram em paz na Palestina como palestinianos no meio de palestinianos. Gaza tinha um próspero bairro judeu, cujo sossego só foi perturbado pela chegada do sionismo à Palestina. O que criou a fractura foi o colonialismo sionista, não diferenças religiosas ou “choques de civilizações”. A nossa luta de hoje, como palestinianos, não é contra os judeus, é contra a ideologia e o movimento que fabricaram esta fractura sectária e a instrumentalizaram para justificar a sua ambição supremacista. Não queremos “expulsar os judeus da Palestina”. Queremos desmantelar o chamado “Estado judeu” e a opressão inerente às suas relações coloniais de poder, queremos substituí-lo pela sua antítese fundamental: um Estado palestiniano democrático e laico, do rio até ao mar. Democrático, porque garante da igualdade de direitos e de representação de todos os seus cidadãos; laico, porque garante da liberdade de culto e livre de segregações de base religiosa, étnica ou outra; palestiniano, porque garante do direito de retorno dos refugiados palestinianos, do fim definitivo do apartheid mantido contra o povo palestiniano e da restauração da sociedade palestiniana multicultural tal como era antes de Israel: um belo mosaico de vida.

Movidos por um amor profundo da justiça, por vezes religioso, por vezes simplesmente humano, escolhestes participar deste movimento de libertação. Ao fazê-lo, tomastes uma posição não só para com a Palestina, mas também para com as vossas próprias sociedades. As narrativas sectárias do colonialismo fragmentam, na verdade, não só as sociedades que visam, mas também aquelas que criam e aquelas de onde provêm: aquelas que visam, como tem acontecido nos 75 anos da catástrofe na Palestina, até ao dia de hoje em Gaza; aquelas que criam, como se pode ver nas divisões religiosos-laicos, asquenases-orientais, brancos-negros e outras divisões identitárias entre os colonos na Palestina; e aquelas de onde provêm, como podemos ver no esmagamento das culturas iídiche, sefardita e judaico-árabe pelo sionismo para fabricar uma identidade israelita construída em torno da brutalidade e do medo e nas suas ímpias alianças com as extremas-direitas de toda a Europa e América do Norte. Os cidadãos franceses de ascendência judaica não se arrepiam quando Netanyahu lhes diz que a sua pátria é Israel, não a França? Não terão os judeus europeus sofrido já o suficiente com ideologias, movimentos e Estados que os viam como pertencentes a outras sociedades em vez de à sua? O que o imperialismo “ocidental” construiu na Palestina – tal como em todas as terras que colonizou – conseguiu dar retumbantemente cabo de tudo. A sua retórica identitária tem, contudo, um preço, e já começa a sentir o seu coice.

Neste sentido, a luta pelo desmantelamento da formação colonial na Palestina e pelo estabelecimento, em seu lugar, de um Estado Democrático Uno não é uma luta que se limite à Palestina. É, pelo contrário, uma luta global, com origem na Palestina, mas que não terminará com a sua libertação. As últimas semanas têm mostrado que a ocupação da Palestina não se limita a ela; que o Estado dos colonos, em Israel, faz parte de uma rede imperialista mundial, cujas relações coloniais de poder se estendem dos capitalistas da indústria de armamento dos EUA aos municípios da Europa e aos algoritmos do Meta, acabando na Autoridade “Palestiniana” e nos governantes “árabes”. A nossa luta contra o colonialismo é, na verdade, a luta da humanidade; e a sua adesão a ela é mais do que mera solidariedade com a Palestina. É uma afirmação de sobrevivência.

No espírito da nossa luta comum, permitam-nos sugerir-vos duas pistas de acção. A primeira é imediata: continuar a pressão sobre os vossos governos para parar o genocídio – cessar-fogo, já! Organizai-vos em movimentos que já existam e que sejam dignos de confiança. Fazei o que tendes a fazer nos partidos políticos situacionistas “menos à direita do que outros”: Ameaçai dividi-los, fazei pressão sobre os seus dirigentes; eles são cobardes e obedecerão, se o vosso esforço for organizado. A segunda é de mais longo prazo. Instamo-vos a reconhecerdes as narrativas sectárias que aqueles que verdadeiramente decidem propalam nas vossas sociedades; a reconhecerdes quem esses decisores são e como instrumentalizam a identidade para vos fragmentar. Com o tempo, esperamos que vos junteis a partidos políticos que não almejem menos do que o derrube desta maléfica ordem mundial em vez de vos submeterdes à sua hegemonia cultural podre e vos moverdes no âmbito das suas opressivas relações de poder.

Por tudo o que fizestes, caros aliados, agradecemo-vos. E para tudo o que fareis, esperamos manter-nos em contacto; para coordenar a nossa luta comum por um mundo novo: um mundo em que a Palestina e todas as outras sociedades estejam desembaraçadas das clivagens sectárias e dos interesses capitalistas; um mundo pós-colonial, democrático, solidário, justo e livre.