A Miserável Comédia do Orçamento 2024

Em 2015, os eleitores escarraram a troika e a sua política de agressão e destruição dos salários, pensões, direitos e emprego. Fizeram-no como lhes era possível no terreno eleitoral: elegendo uma larga maioria de deputados de partidos saídos do movimento dos trabalhadores (PS, PCP, BE).

Esta maioria eleitoral confirmou-se em 2019 e 2021, apesar das crises constantes e do fim da inicial “geringonça” — e apesar de, desde 2015, no essencial, os governos PS+ terem continuado as políticas de austeridade da troika, com pequenas adaptações e muita prestidigitação. Praticaram, em particular, um desinvestimento público radical, que tem levado à liquidação progressiva do serviço nacional de saúde, do ensino público e do direito à habitação.

A demissão do governo Costa suscitou muitas interrogações. Se a sua causa próxima foi o inquérito criminal ao primeiro-ministro anunciado pela Procuradoria-Geral, associado à investigação de alegados crimes de corrupção e similares de personagens da roda próxima do chefe do governo (alegações entretanto, em parte, invalidadas pelo juiz de instrução), muito se especula com as intenções e o papel do Presidente da República no caso. Marcelo é conhecido há muitos anos como o maquiavel de serviço das elites económicas e políticas do país.

As manobras foram aos montes. Assim, nos termos da Constituição, não havia qualquer razão para dissolver a Assembleia da República. Saindo Costa por razões aleatórias, um substituto do seu partido, com maioria absoluta em São Bento, em nada mudaria a “estabilidade institucional” tão prezada pelo presidente.

Apesar disso, Marcelo decidiu dissolver. E ainda se deu ao requinte de só “formalizar” a demissão e dissolução na data que desse jeito para, antes, garantir a aprovação do projecto de orçamento para 2024… do mesmo governo que demitia!

Entendamo-nos: este paradoxo não tem que ver com o orçamento em si. Este agrada obviamente a Marcelo, porque continua com a redistribuição do trabalho para o capital, organiza mais ataques aos direitos e salários dos trabalhadores e garante a distribuição do maná do PRR pelos grandes grupos económicos.

Também a Comissão Europeia se pronunciou com clareza: “O ponto de partida de Portugal em termos orçamentais é positivo” (Público). A Comissão deixou, no entanto, críticas ao “carácter expansionista” do orçamento: queria que se cancelassem as “medidas de apoio no sector da energia e [se pusesse] maior foco na eficiência da despesa pública e na absorção dos fundos comunitários e do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Chateia a Comissão que a população não seja exposta ainda mais radicalmente aos impactos da crise, nomeadamente na habitação e energia, libertando capitais para pagar mais depressa a dívida à banca internacional! (note-se, de passagem, que, segundo a ortodoxia económica, o orçamento não só não é expansionista, como é de extrema austeridade, já que gera um excedente primário de uns 3% do PIB…). No final de Novembro, assiste-se, assim, a uma curiosa comédia: o orçamento, que já não é de Costa, é de Marcelo/Bruxelas, aprovado com os votos a favor do demitido PS e contra do PSD — do mesmo Marcelo. E, a seguir, executado pelo governo de um ou do outro, acolitado pela geringonça de aliados que calhar segundo o resultado das urnas.