Gaza – Nova Ofensiva Sionista

Um “cenário ainda mais infernal”, segundo a ONU

(Traduzido e adaptado de ​La Tribune des Travailleurs nº418)

No dia 1 de Dezembro, o governo de Netanyahu pôs fim à trégua, lançando uma nova ofensiva contra Gaza, particularmente no Sul, onde se refugiaram mais de um milhão de habitantes da cidade de Gaza, que foi varrida do mapa. Até 4 de Dezembro, a ofensiva já tinha elevado o número de mortos para 15.207, dos quais 6.150 crianças. A ONU alarma-se face a um “cenário ainda mais infernal”.

O chefe do Estado-Maior israelita prometeu que “o que fizemos com força e minúcia no Norte da Faixa de Gaza, também o faremos” no Sul (The Times of Israel). “Minúcias” da declaração de barbárie… A UNICEF denuncia já “perdas devastadoras de crianças” durante os bombardeamentos no Sul (2 de Dezembro). O Comité Internacional da Cruz Vermelha afirma, entretanto, que “estamos a criar uma geração de amputados” (4 de Dezembro).

Os planos para o “pós-guerra” são a condizer. Uma parte do governo de Netanyahu não desistiu de expulsar os palestinianos de Gaza para o Egipto… enquanto um plano americano-israelita, revelado pelo Wall Street Journal, visa evacuar Gaza de milhares de combatentes do Hamas “como o Líbano foi evacuado de ‘fedayin’ da OLP em 1982”, nota o Courrier international (1 de Dezembro), que esclarece, no entanto, que “a coisa parece muito complicada”. Seja qual for a “solução” encarada por Israel, a sua base só pode ser o esmagamento e a expulsão.

Tudo isto não convém muito à administração Biden. Não porque tenha a menor simpatia pelo povo palestiniano, mas porque, pela primeira vez na história, a maioria da população americana não apoia a ofensiva israelita. A CNN refere (30 de Novembro) que “o apoio de Biden a Netanyahu custou-lhe caro em termos políticos, tanto ao nível interno como externo (…). No plano interno, os milhares de mortos palestinianos (…) fazem temer que os eleitores mais jovens e progressistas, já distanciados de Biden, não votem nele em Novembro de 2024 (…). O risco de divergências crescentes entre os dois governos sobre a condução futura da guerra poderá trazer novas tensões. Os interesses nacionais vitais dos Estados Unidos e de Israel não estão irrevogavelmente alinhados”.

O secretário americano da defesa, Austin, avisou Israel de que “se vocês empurram (os palestinianos) para os braços do inimigo, transformarão uma vitória táctica numa derrota estratégica” (3 de Dezembro). Na ocasião, Austin e Biden tiraram outra vez da cartola a pretensa “solução de dois Estados”: segundo Austin, “única saída do trágico confronto”.

Mas a administração americana sabe perfeitamente que esta pretensa “solução” não passa de um chocalho que se agita com regularidade há setenta e cinco anos. Já estava na Resolução 181 da ONU que, em 29 de Novembro de 1947, impôs a partilha da Palestina, ou seja, a sua divisão artificial num “Estado judeu” e num “Estado árabe”; este nunca chegou a ver a luz. A invocação dessa solução nunca evitou massacres e “trágicos confrontos”, bem pelo contrário. Como sempre, esta “solução” esbarra numa realidade: nenhum dirigente do Estado de Israel tem a intenção de tolerar “Estado palestiniano” algum.


Distribuição de armas
e utilização de fósforo branco

O governo Netanyahu distribuiu 150.000 licenças de porte de arma a israelitas desde 7 de Outubro – termo de  comparação: no mesmo período do ano passado, emitiram-se 42 licenças! Discordando destas medidas de guerra civil, o director do Departamento de Licenças demitiu-se. O diário Haaretz denunciou que “se distribuem armas como se fossem rebuçados” (4 de Dezembro). Principais beneficiários são os colonos extremistas da Cisjordânia que, juntamente com o exército, ali assassinaram, desde 7 de Outubro, 256 palestinianos.

Ficou, entretanto, provado que o exército israelita utiliza bombas de fósforo branco no Sul do Líbano. A Amnistia Internacional tornou-o público, recordando as consequências do uso desta substância incendiária: “as pessoas expostas ao fósforo branco podem sofrer lesões respiratórias, falência de órgãos e outros ferimentos muito graves e potencialmente fatais, incluindo queimaduras extremamente difíceis de tratar e insusceptíveis de extinção com água. Basta muitas vezes que estas queimaduras afectem menos de 10% do corpo para serem fatais”.


A única solução democrática

A One Democratic State Initiative (ODSI, Iniciativa por um Estado Democrático Uno) e La Tribune des Travailleurs publicaram a lista dos 1012 activistas, dirigentes e personalidades de trinta e seis países que assinaram o apelo de apoio à iniciativa de 14.000 palestinianos junto dos “seus aliados judeus” que abre a perspectiva de um Estado palestiniano laico e democrático: “Democrático, no sentido de que garantirá a igualdade de direitos e de representação a todos os seus cidadãos; laico, no sentido de que garantirá a liberdade de consciência e não praticará qualquer segregação com base na identidade religiosa, étnica ou outra; palestiniano, porque garantirá o direito de regresso dos refugiados palestinianos e porá fim ao apartheid de uma vez por todas”. No dia 3 de Dezembro, realizou-se uma primeira reunião, nos Estados Unidos, que reuniu setenta e cinco dos signatários deste apelo, dirigida por activistas palestinianos e americanos, entre eles muitos activistas da Jewish Voice for Peace.


A Intervenção israelita em Gaza

“Fábrica de assassínios em massa”

Conclusões reveladas por um inquérito da revista israelita +972

O porta-voz de Biden John Kirby atreveu-se a declarar, a 3 de Dezembro, que Israel “envidava esforços” para minimizar as baixas civis na Faixa de Gaza.

Cobrem-se, assim, os crimes cometidos pelo governo israelita, contrariando os factos que acabam de ser revelados pela revista +972, que dá conta da existência de uma “fábrica de assassinatos em massa” (30 de Novembro). Esta publicação israelita relata, na sequência de uma investigação junto de actuais e antigos membros dos serviços secretos israelitas, a existência de um sistema de “ataques aéreos autorizados contra alvos não militares e a utilização de um sistema de inteligência artificial”, que permitiu “ao exército israelita travar a mais mortífera guerra (…) contra os palestinianos desde a Nakba de 1948”.

Em comparação com as intervenções anteriores em Gaza, na guerra em curso o exército israelita “expandiu significativamente o bombardeamento de alvos que não são claramente de natureza militar. Estes incluem residências privadas, também edifícios públicos, infra-estruturas e blocos de apartamentos, que, segundo algumas fontes, são alvos privilegiados para as forças armadas israelitas (…), que o exército define como ‘alvos potentes’ (‘matarot otzem’)“.

Os membros dos serviços de informações consultados, escreve o +972, “confirmaram que o exército israelita possui ficheiros sobre a grande maioria dos alvos potenciais em Gaza – habitações incluídas –  que determinam o número de potenciais civis mortos num ataque a um determinado alvo. Este número é calculado e conhecido antecipadamente pelas unidades de informações do exército, que também sabem, pouco antes de lançar um ataque, quantos civis serão certamente mortos. (…)

Os números, que, em operações anteriores, eram de dezenas de mortos civis [autorizados] como danos colaterais num ataque a um responsável de alto nível, passaram para centenas de mortos civis de danos colaterais”,  disse uma das fontes.

Nada acontece por acaso”, disse outra fonte. “Quando uma menina de três anos é morta numa casa em Gaza, é porque alguém no exército decidiu que não era grave ela ser morta – era um preço que valia a pena pagar para atingir [outro] alvo (…). Tudo é intencional. Sabemos exactamente quantos danos colaterais existem em cada casa.” 

Segundo a investigação, “outra razão para o grande número de alvos e os consideráveis danos causados à população civil em Gaza é a utilização generalizada de um sistema chamado ‘Habsora’ (‘O Evangelho’), que se baseia em boa parte em inteligência artificial e pode ‘gerar’ alvos quase automaticamente, a um ritmo que excede em muito o que era possível anteriormente. Este sistema de inteligência artificial possibilita, no essencial, para usar a descrição dum antigo oficial dos serviços secretos, uma “fábrica de assassínios em massa”.


Sobreviver com dois a três litros de água por dia

Beber, preparar comida, ir à casa de banho, lavar-se… Estas necessidades básicas da vida passaram a ser quase impossíveis na Faixa de Gaza, refere um artigo do diário britânico The Guardian (23 de Novembro).

Devido aos bombardeamentos israelitas, os palestinianos de Gaza só têm acesso a dois ou três litros de água por dia (…). O aquífero que corre ao longo da costa do Mediterrâneo, de Israel para o Egipto, passando por Gaza, é a única fonte natural de água para os palestinianos de Gaza. Mas esta água está fortemente poluída: segundo estimativas, em 2022, 90.000 metros cúbicos de águas residuais fluíam diariamente para o Mediterrâneo, tornando 96,2% da água imprópria para consumo. Os palestinianos recorrem à dessalinização e ao tratamento da água, mas os bombardeamentos e o bloqueio provocaram o colapso total do sistema de saneamento (…). Dois milhões e trezentos mil palestinianos sobrevivem actualmente em Gaza com dois a três litros de água por dia. Termo de comparação: a descarga de uma sanita consome cerca de 6 litros e um duche quase 10 litros por minuto.”

Ainda a título de comparação, refere igualmente The Guardian que um palestiniano da Cisjordânia recebe em média 80 litros de água por dia, “menos do que os 100 litros recomendados pela Organização Mundial de Saúde”. Os israelitas “têm acesso a uma média de 300 litros de água potável por dia”, mesmo “os que vivem em colonatos ilegais na Cisjordânia, que podem, assim, desenvolver os seus vinhedos, olivais, quintas e pomares de tâmaras”.

Prossegue The Guardian: “O número de pessoas que fogem do Norte da Faixa de Gaza aumenta sem parar. Algumas localidades do Sul só podem prover uma casa de banho para 600 pessoas. As doenças infecciosas alastram. Mesmo antes do conflito, uma em cada quatro crianças em Gaza sofria de doenças diarreicas, que matam, sobretudo, crianças com menos de cinco anos (…). Os habitantes de Gaza tiveram de recorrer a água do mar, contaminada pelas águas residuais. As consequências são catastróficas. Agora, com o sistema de saúde destruído, poucos meios há para tratar quem adoece.”


Netanyahu sabia. Netanyahu ignorou.
Netanyahu é responsável

Apesar da nova ofensiva contra Gaza, Netanyahu não conseguiu evitar que o seu processo por corrupção fosse reatado (previsto para 4 de Dezembro). O processo “fora suspenso, juntamente com todos os outros casos não urgentes, a seguir ao 7 de Outubro” (Times of Israel, 30 de Novembro).

Acrescem, semana após semana, novas revelações sobre a responsabilidade de Netanyahu nas condições em que se desenrolou o ataque do Hamas de 7 de Outubro, que causou 1200 mortos do lado israelita. O editorial do diário israelita Haaretz (22 de Novembro) é contundente: “Netanyahu sabia. Netanyahu ignorou. Netanyahu é responsável”. O diário acrescenta que “o chefe do departamento de investigação dos serviços secretos militares (israelitas) tinha enviado pessoalmente um aviso a Benyamin Netanyahu”. O New York Times afirmou, entretanto, que Israel sabia dos preparativos do Hamas para esta operação militar pelo menos um ano antes do ataque de 7 de Outubro.

A decisão do governo israelita de pôr fim à trégua está a provocar novas clivagens na sociedade israelita. Uma sondagem de opinião realizada para o diário israelita Maariv, na véspera do recomeço dos bombardeamentos, mostrou que 54% dos israelitas são pela continuação da trégua temporária na Faixa de Gaza e pela troca de prisioneiros entre Israel e o Hamas.