Christine Lagarde e a luta de classes

23 de Fevereiro de 2024 – A chefe do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, falou à imprensa no final da reunião informal dos ministros das Finanças da zona euro (Eurogrupo), com a presença dos governantes da União Europeia (UE) e governadores dos bancos centrais nacionais. Disse:

Os números relativos aos salários do quarto trimestre são obviamente encorajadores. Mas (…) o Conselho do BCE precisa de estar mais confiante de que o processo de abrandamento de inflação que estamos a observar será sustentável e nos levará ao objectivo de 2% a médio prazo que temos. Há muitos sectores e trabalhadores que estão abrangidos por negociações que serão concluídas no decurso do primeiro trimestre de 2024 e penso que esses números, especialmente se continuarem a ser encorajadores, serão importantes para avaliarmos daqui para a frente, a fim de alcançarmos confiança”.

Na língua de pau dos banqueiros centrais, mas com a virtude da quase transparência, Lagarde diz:

Se, nas negociações colectivas que estão para se concluir Europa fora, os trabalhadores e seus representantes forem “razoáveis” e aceitarem continuar a perder salário real, então, nós, BCE, sentir-nos-emos “encorajados” a começar a ver se começamos a pensar em, talvez, baixar as taxas de juro.

Em contrapartida, se os trabalhadores decidirem arrancar aumentos salariais significativos, então esqueçam: os juros ficam como estão ou sobem! O que significa isto: como os contratos de crédito, nomeadamente hipotecário, estão automaticamente ligados à taxa de juro da srª Lagarde, o BCE irá ao bolso dos trabalhadores tirar-lhes o que tiverem ganho em aumento de salário e transferi-lo, sem espinhas, para os bancos, como “juros recebidos”.

As mais recentes palavras de Lagarde podem – e devem! – ser lidas como um repto ao movimento operário. Em linguagem popular e acessível, ela diz: enquanto for a gente a mandar, vocês não têm qualquer hipótese, pois, das duas, uma:

  • ou vocês ficam-se nas encolhas, comem aumentos abaixo da inflação e continuam a perder salário real;
  • ou, se se armam em espertos e se metem em greves duras para conseguir aumentos de salários a sério – então a gente aumenta ou mantém os juros e vai-vos lá buscar cada cêntimo do que vocês acharam que conquistaram!

Aos senhores PNSs, Raimundos e Mortáguas,
está Lagarde a dizer com um sorriso irónico:
ainda bem que vocês meteram a luta de classes na gaveta
– porque nós, pela nossa parte, vamos continuar a travá-la sem piedade!

Nesse sentido, Lagarde tem a virtude de, do lado do grande capital, falar a verdade aos trabalhadores, tal como nós o fazemos do lado do trabalho: se os trabalhadores e seus dirigentes  não tiverem a coragem de romper com os tratados e as instituições “europeias”, ficam sempre tramados – e pouco interessa quem elejam para estar no governozeco de cada país.

Já os outros, os que andam à cata do voto dos trabalhadores na esquerda oficial, PS, PCP ou BE, andam todos a encobrir a simples verdade de Lagarde com nuvens de poeira e retórica mentirosa. Aos senhores PNSs, Raimundos e Mortáguas, está Lagarde a dizer com um sorriso irónico: ainda bem que vocês meteram a luta de classes na gaveta – porque nós, pela nossa parte, vamos continuar a travá-la sem piedade!

Como explicávamos no artigo intitulado “os bancos centrais, estados-maiores da guerra do capital contra o trabalho”, no nº 30 do boletim O Trabalho, de 27 de Julho de 2022:

A política monetária actual dos bancos centrais é muito simples e para isso serve a espora dos juros: espicaçar o patronato no seu todo, como classe, a atacar os trabalhadores; e forçar os governos recalcitrantes a emoldurar esse ataque com políticas
– que empurrem sectores do capital para a falência ou para reduzirem drasticamente os investimentos  – aumentando, assim, o desemprego e a “pressão” à baixa dos salários, ainda que à custa de uma crise económica; e
– de repressão salarial directa, desmontando direitos dos trabalhadores legalmente constituídos na legislação laboral, assim como as caixas de pensões e os sistemas de saúde, ensino e habitação públicos, que são, afinal, a componente diferida e colectiva do salário da classe trabalhadora.