França na vanguarda da militarização da sociedade

ECONOMIA DE GUERRA E GUERRA SOCIAL

Citius, altius, fortius” (mais rápido, mais alto, mais forte) é o lema olímpico. Recorda-o o jornal Le Parisien (26 de Março), que acrescenta: “Passou, também, a ser a palavra de ordem dita e redita às indústrias de defesa francesas para pô-las em modo de ‘economia de guerra’. A ordem vem do topo, do Presidente da República, chefe das forças armadas francesas. O discurso parece saído dos livros de história… e é, confesse-se, um tanto assustador.

Um tanto assustador“? Que eufemismo, olhando de fio a pavio os anúncios das últimas semanas!

Com o presidente ucraniano Zelensky aos berros a pedir armas aos seus aliados, entre os quais a França, um alto funcionário do Ministério da Defesa resume a estratégia do Governo para as empresas de defesa: “Reduzir prazos de entrega, aumentar cadências, trazer de volta para a França as cadeias de produção estratégicas” (Le Parisien).

Três imperativos que, a fazer fé no Governo, é impossível levar à prática para produzir medicamentos, por exemplo, mas que, para produzir armas, passam a ser perfeitamente possíveis.

Além de afectar 413 mil milhões de euros ao orçamento de guerra, a Lei de Programação Militar (LPM) para 2024-2030 prevê também medidas para reforçar cada vez mais a economia de guerra. Por exemplo, o governo pode exigir que as empresas que produzem para o exército e para o sector civil dêem prioridade às encomendas militares. A LPM permite igualmente a criação de uma “reserva industrial” sujeita a estatuto militar: para aumentar os ritmos de produção, pode-se pôr à disposição das indústrias – voluntariamente ou por requisição – 2.000 pessoas com competências neste domínio.

No dia 5 de Março, o Senado aprovou um projecto de lei apresentado pelo senador Pascal Allizard, dos “Republicanos”, que afecta uma parte das verbas arrecadadas nas cadernetas bancárias ditas “A” (algo semelhante aos Certificados de Aforro) ao financiamento das empresas do armamento. Referiu Allizard que “o braço militar e industrial tem de estar capacitado para fazer face a qualquer ameaça à paz e à estabilidade. Não é actualmente o caso.” Vários senadores favoráveis à medida destacaram a sua “urgência“. “É uma solução eficaz a curto prazo para acelerar a transição para uma verdadeira economia de guerra“, declarou Vanina Paoli-Gagin, do grupo Les Indépendants.

Entretanto, a 26 de Março, é anunciada a “catástrofe” de que a França se encaminha para um défice orçamental de 5,5% do PIB. Moscovici, o presidente do Tribunal de Contas e antigo ministro socialista, declarou à France Inter não haver alternativa a cortar as despesas públicas em pelo menos 50 mil milhões de euros.

E porquê? Porque o Governo não pode nem aumentar os impostos nem decretar que o crescimento económico se reate. Por isso, “vão ser precisas economias“. “Esforços partilhados de forma equitativa e sentida como justa”, acrescenta-se, a sossegar.

Só que Moscovici põe de parte poupanças nas despesas ditas “incompressíveis” e concentra o seu pedido de “esforços” no “Estado, autarquias locais e segurança social“. Por outras palavras: nos serviços públicos, escolas, hospitais, centros de saúde, seguros de saúde e pensões! Em suma, iria calhar aos trabalhadores colmatar o défice à custa da sua saúde, da educação dos seus filhos e dos empregos públicos. Como se fosse deles a responsabilidade!

Só que não é. De onde saiu este défice? Moscovici põe a guerra entre as despesas “incompressíveis”, “o financiamento das despesas adicionais que teremos de fazer com a Ucrânia“. Outra rubrica no seu dizer incompressível é a do custo da dívida, ou seja, os cerca de 60 mil milhões de euros pagos por ano aos grandes bancos em juros da dívida, que Moscovici avisa que em breve rondarão 80 mil milhões de euros. Outros oitenta mil milhões de euros é o que custam ao Estado as isenções de contribuições para a segurança social indevidamente concedidas aos patrões, verdadeira expropriação dos salários diferidos dos trabalhadores. Quanto aos recursos… para Moscovici e os demais, nem pensar em tocar nos 146 mil milhões de euros de lucros obtidos pelas empresas do CAC40 no ano passado.

MILITARIZAÇÃO DA SOCIEDADE

JUVENTUDE

Lançado em 2019, o Serviço Nacional Universal (SNU) tem o objectivo de alistar os jovens dos 15 aos 17 anos.  Desenvolve-se em duas fases: uma “estada de coesão”, de doze dias, e uma “missão de interesse geral”, de doze dias. Estas duas fases podem ser completadas por um período de “alistamento” facultativo de, pelo menos, três meses.

O Governo tenciona lançar o programa em grande escala em 2024, com 80 000 jovens (contra 40 000 em 2023), e alargá-lo a todos os jovens no início do ano lectivo de 2026.

Desde que o programa foi lançado, tem-se registado número crescente de casos de abuso e atentado à saúde dos jovens. Mas o Governo não desiste.

Para promover o SNU, vários serviços locais da educação nacional (DSDEN) criaram comités de pilotagem. É o caso de Alpes-de-Haute-Provence, onde o comité de pilotagem reúne os serviços da educação nacional, a delegação militar e as forças de segurança interna.

Noutros departamentos, os DSDEN atribuem quotas de recrutamento para o SNU aos directores dos estabelecimentos de ensino. Em Bouches-du-Rhône, por exemplo, o DSDEN impõe quotas de recrutamento, pedindo aos directores que “forneçam” cerca de quarenta alunos cada um!

Esta operação será facilitada pelo estágio obrigatório para os alunos do 10º ano a partir de Junho de 2024. Está previsto que todos os alunos, nomeadamente os oriundos das classes populares, que não consigam um estágio numa empresa, possam substituí-lo por uma “estada de coesão” no SNU.

Nas escolas, colégios e liceus de Paris: uma carta para “inspirar o alistamento” dos alunos

A Délégation Académique à la Mémoire, à l’Histoire et à la Citoyenneté (DAMHEC) é uma “especificidade” da academia parisiense que, “tem por objectivo levar a efeito, em conformidade com o projecto académico, a política académica em matéria de cidadania, nomeadamente no atinente aos concursos escolares, comemorações e a ligação exército-nação“.

Reza assim a sua “Carta de Informação sobre a Educação para a Defesa n.º 1” (Março de 2024), destinada aos “actores da comunidade educativa“: “O regresso da guerra de alta intensidade à Europa interpela a coesão nacional, o estado das forças morais da nação ao serviço dos seus exércitos e, por conseguinte, a sua capacidade de resiliência. Neste contexto, a juventude é um terreno fundamental da sensibilização e formação em matéria de defesa. Há-de ela descobrir e compreender as missões dos actores da defesa e da segurança interna, suscitando o compromisso individual“.

Como? “Através de cursos de formação, eventos, acções, projectos educativos e actividades pedagógicas nos domínios da defesa, da segurança e da memória, organizados quer pelo Instituto de Altos Estudos da Defesa Nacional (IHEDN), quer pelas forças armadas e por todas as forças de segurança, quer pelo sistema educativo nacional“. Convidam-se os “actores da comunidade educativa” – ou seja, em primeiro lugar os professores – a colaborar com o exército e a polícia para “suscitar o compromisso” dos seus alunos.

A carta elenca um conjunto de iniciativas a realizar neste âmbito.

É claro que todas as estes projectos são em grande parte financiados pelo Departamento de Memória, Cultura e Arquivos do Ministério da Defesa.

Na reunião do Conselho da Educação de 22 de Março do seu departamento, a inspectora da academia, interpelada por um sindicato, disse que estava a tomar a conhecimento da carta nesse momento. Comprometeu-se a enviar um desmentido aos professores, afirmando que a carta não lhes era dirigida. Vamos a ver…

DESEMPREGADOS

A France Travail (uma espécie de Instituto do Emprego e Formação Profissional) está a enviar aos desempregados inscritos um procedimento de fiscalização que implica o preenchimento de um questionário muito longo e a sua devolução à instituição. Acompanha-o um convite a informarem-se das carreiras propostas pelo exército, onde se fica a saber que “o número de recrutas voltará a aumentar em 2024“.

Não admira por aí além que o exército tente recrutar desempregados. Já n’O Capital, Marx definia os desempregados, no modo de produção capitalista, como “exército de reserva do capital“, ou seja, a camada mais miserável de trabalhadores, prontos a trabalhar ao mais baixo custo e a fazer os trabalhos mais baixos. Como, actualmente, os capitalistas precisam de carne para canhão, é natural procurarem-na no alfobre de desempregados.

OPERAÇÃO DE PROPAGANDA DIRIGIDA AOS PRESIDENTES DE CÂMARA

No dia 20 de Março, os presidentes de câmara do departamento de Côtes-d’Armor receberam uma surpreendente carta informativa. O objectivo da carta, da Delegação Militar Departamental (DMD), era “enquadrar na perspectiva actual um acontecimento que ocorreu na Europa de Leste após a Primeira Guerra Mundial e que envolveu a França, que enviou peritos, nomeadamente militares“.

Em causa a guerra russo-polaca (1919-1921) que, segundo a carta, “nos há-de ajudar a entender o estado de espírito dos povos desta região do mundo“.

É claro que, como diz a lengalenga, qualquer semelhança com acontecimentos ou personagens existentes em 2024 seria mera coincidência.

Análise mais atenta desvanece, porém, a impressão de coincidência e substitui-a por uma certeza: a intenção do DMD de comparar a actual guerra na Ucrânia com a guerra russo-polaca de 1919-1921 e, consequentemente, preparar os espíritos para o alargamento do conflito na Europa e, mais especificamente, para a intervenção francesa.

Lê-se no documento que: “a Rússia (…) vê estes territórios (Polónia) como províncias russas em rebelião, que a revolução (…) não permite reprimir rapidamente (…). O objectivo da ofensiva russa na Polónia é ‘sondar a Europa’ no fito de aí fazer penetrar o bolchevismo e exportar a revolução proletária pela força, graças à força“. É impossível confundir o actual regime dos oligarcas russos com o governo revolucionário de 1917. Mas a ideia que se sugere é que Putin quer “reprimir” a Ucrânia em 2024, tal como outros queriam “reprimir” a Polónia um século antes.

O boletim continua: “A França é um dos esteios mais activos da Polónia, enviando uma missão militar para apoiar e organizar o jovem exército polaco. Com efeito, no intuito de barrar o caminho aos “vermelhos” e impedir a junção entre bolcheviques russos e alemães, Paris e Londres enviaram duas missões militares para a Polónia (…) que foram incorporadas em unidades polacas a vários níveis“. Uma vez mais: o objectivo, em 1924, não é impedir a propagação da Revolução Russa.  No entanto, a alusão à ajuda militar maciça de Macron a Zelensky é clara e é confirmada por outro excerto do documento: “Há quem diga que foi a chegada tempestiva das forças aliadas que salvou a Polónia. No mínimo, a assistência militar e os abastecimentos [franceses] foram decisivos na batalha“.

O DMD assinala de passagem que havia uma forte corrente da opinião pública hostil à intervenção militar, citando a palavra de ordem de L’Humanité em 1920: “Nem um homem, nem um tostão para a Polónia reaccionária e capitalista!” Faça-se, neste ponto, jus à posição do DMD: a palavra de ordem “Nem um cêntimo, nem uma arma, nem um homem para a guerra na Ucrânia” continua a ser totalmente actual.

A evidência é que o DMD está a pedir aos presidentes de câmara para prepararem os seus eleitores para a guerra.

A GUERRA DE MACRON TEM DOIS ALVOS

O governo quer enviar os trabalhadores franceses para uma guerra que não é deles, usando os jovens e os mais desfavorecidos como carne para canhão.

O primeiro objectivo da guerra de Macron no estrangeiro é defender os interesses da NATO e os mercados das potências capitalistas ocidentais.

O segundo objectivo é a guerra interna: contra os trabalhadores, os jovens e os seus direitos colectivos.

Só que, não, senhores Macron e Moscovici, o vosso défice não é o défice dos trabalhadores! O vosso défice é resultado das opções de classe do vosso governo ao serviço dos capitalistas, opções que favorecem a guerra, o saque da segurança social e a destruição dos serviços públicos e enchem o bandulho dos capitalistas!

Nos próximos dias, já se sabe que as organizações de trabalhadores vão ser convocadas pelo governo para “consultas” e outros simulacros de “diálogo social“, em que serão convidadas a apresentar propostas para que todos possam apertar o cinto… “justamente“, claro.

A independência do movimento operário exige que as organizações que falam em nome dos trabalhadores respondam com firmeza ao governo: este défice não é dos trabalhadores. Ninguém mexa nas suas conquistas, nas escolas, nos hospitais, na segurança social e nos direitos da população.

O défice é deles, a crise é deles, a guerra é deles. Numa palavra: a falência é do sistema deles.