A União Europeia e os Estados Unidos preparam a guerra

Uma peça, em múltiplos actos, repleta de cenas tristes

[actualizado em 18/4/2024]

Iº acto

No dia 22 de Fevereiro de 2024, a revista The Economist, que há mais de 150 anos reflecte o pensamento “estratégico” da City de Londres e da Wall Street de Nova Iorque escreve em editorial:

Os dirigentes europeus têm de deitar borda fora a sua complacência pós-soviética. Quer dizer: aumentar as despesas militares a um nível sem precedentes há décadas, restaurando as descuradas tradições militares europeias, reestruturando as suas indústrias de armamento e preparando-se para uma possível guerra. O trabalho mal começou. (…) Dada a demora dos ciclos de planeamento militar, a Europa tem de começar a arrepiar caminho desde já. A prioridade é dar uma chicotada à sua própria capacidade de combate. Isso começa por um programa maciço de recrutamento e de compra de material. (…) Não vai ser barato. Este ano, a parte europeia da NATO vai gastar à volta de €380 mil milhões em defesa. Corrigido do poder de compra, é mais ou menos o mesmo que a Rússia 1. (…) O défice (de despesas em material militar) acumulado pelos membros europeus da NATO (mais a Noruega) desde 1991 é de €557.000 milhões 2.(…) As discussões sobre os orçamentos da NATO tendem a resumir-se a saber se um determinado país afec-ta 2% do PIB à defesa. (…) No entanto, mesmo com ganhos de eficiência, 2% não vai chegar. Se os dirigentes europeus tiverem de arrecadar as verbas necessárias cortando noutros serviços, aumentando impostos e endividando-se, vão ter de convencer os eleitores de que os sacrifícios valem a pena.(…) Tais decisões difíceis abrangem também as armas nucleares.” [negritos nossos]

Programa para os governos europeus:

– aumentar as despesas militares a um nível sem precedentes;
- restruturar a indústria de armamento e preparar-se para a guerra;
- programa maciço de recrutamento e compra de material;
- colmatar “défice” da despesa em material militar (€557 mil milhões).

O palavreado do texto do Economist é forte, mesmo no clima que se vive desde que o exército de Putin invadiu a Ucrânia, encurralado pelo aperto do cerco da NATO. É uma chicotada violenta aos “dirigentes europeus”, os quais, coitados, apesar de tudo não fazem outra coisa senão desembolsar euros aos milhares de milhões e fornecer material militar avançado para que o exército de Zelensky possa continuar a sacrificar uma geração inteira de ucranianos na forna-lha da guerra pelos “valores europeus” (valores europeus medidos, bem entendido, em euros ou dólares).

Só que, agora, é preciso dinheiro a sério para a guerra, e, para arranjá-lo, talhar à catanada no que resta dos “Estados-previdência”. A burguesia precisa de passar à economia de guerra, que inclui a guerra de classe interna.

2º acto

A 16 de Fevereiro, a França e a Ucrânia assinaram em Paris um acordo de cooperação para dez anos em matéria de segurança. O objectivo expresso: preparar a adesão da Ucrânia à União Europeia e à NATO. Do acordo consta o fornecimento de meios militares modernos, terrestres, aéreos, marítimos, espaciais e cibernéticos franceses à Ucrânia (mais 3.000 milhões de euros em 2024) e a organização de investimento militar-industrial francês na Ucrânia. A Assem-bleia Nacional francesa ratificou o acordo em 12 de Março por esmagadora maioria.

3º acto

Macron é um banqueiro francês, ligado à alta finança internacional, que conseguiu alcandorar-se a presidente da República com votações muito minoritárias.

No dia 26 de Fevereiro, este Macron convocou uma cimeira de “dirigentes europeus” para Paris. Nela, fez uma pergunta aos seus pares: quem é a favor de enviar tropas “europeias” para a guerra na Ucrânia se for preciso (subentendendo-se: vai ser preciso com certeza)?

A pergunta provocou o pânico. Os “dirigentes europeus” há muito trabalham debaixo de um triplo entendimento fundamental, que é assim:

1) para sobreviver e manter as suas sinecuras, a oligarquia ucraniana não tem outro remédio senão pendurar-se na UE;

2) A “Europa”, com os americanos a pisarem-lhe os calos, tem de ajudar os EUA a ganhar acesso aos recursos da Ucrânia (e da Rússia! e da China!) se quiser salvar as suas economias da pressão americana e da crise, reduzindo os custos das suas empresas;

3) com as armas e o dinheiro que “europeus” e americanos fornecem à clique de Zelensky, compete a esta organizar o massacre da juventude ucraniana, na expectativa de ir massacrando também uma boa fatia da juventude russa. “Europeus” e americanos tiram, do enfraquecimento geral de uns e outros, as castanhas do lume.

E agora, pensaram, vem Macron dizer que é preciso pensar seriamente em mandar também a juventude “europeia” morrer pelos lucros da alta finança! O homem é louco, vai-nos fazer perder as próximas eleições!

Nesse mesmo dia, 26 de Fevereiro, o chanceler alemão Scholz, de partida para Paris, criara celeuma. Sem ninguém ter levantado a lebre, Scholz declarou peremptoriamente que a Alemanha não forneceria à Ucrânia o sistema de mísseis Taurus, que tem um alcance de 500 Km e é capaz de furar blindagens fortes. Pressionado a justificar-se, Scholz referiu que, se fornecesse os mísseis, a Alemanha teria de mandar soldados para o teatro de guerra. Ora a Alemanha não podia fazer como a França e a Grã-Bretanha…

Fica, de repente, oficialmente de manifesto que França e Grã-Bretanha têm soldados seus no teatro de guerra: estão em guerra não declarada com a Rússia. Os chefes políticos e militares britânicos e franceses fumegam de fúria com a indiscrição de Scholz.

Por outro lado, a revista Der Spiegel (2 de Março) escreve, a propósito de comentários de militares alemães, desmentindo Scholz , que negam serem necessários soldados da Bundeswehr para acompanhar e manejar os mísseis: “Há indicações de que Scholz não quer largar mão do Taurus por não confiar nos ucranianos, pelo menos inteiramente. Isso tornaria plausível a alegação de Scholz de que seriam precisos soldados alemães para os mísseis. Precisos, mas não para prestar ajuda técnica; precisos, para vigiar os ucranianos. Para ter a certeza de que não vá um dia um Taurus cair sobre o Kremlin.

No final da cimeira, Macron deplora a “tampa” dos outros. Mas acrescenta: o envio de tropas ocidentais para a Ucrânia não fica excluído, malgrado a actual “falta deconsenso”.

4º acto

No dia 27 de Fevereiro, a assembleia conhecida como Parlamento Europeu aprova o “Mecanismo para a Ucrânia3, uma linha financeira de 50 mil milhões de euros até 2027. O “mecanismo” é aprovado por esmagadora maioria, da extrema-direita até à esquerda que se intitula radical, incluindo a France insoumise 4. Os objectivos estratégicos do “mecanismo” são claros: impedir o colapso do Estado ucraniano, incapaz de suster uma guerra prolongada: “manter a estabilidade macrofinanceira da Ucrânia e atenuar as dificuldades de financiamento externo e interno do país, a fim de assegurar o funcionamento contínuo do Estado ucraniano” e criar “(…) as bases de um país livre, culturalmente dinâmico e próspero, com uma economia resiliente que esteja bem integrada na economia europeia e mundial, alicerçado nos valores da União e que avance no sentido da adesão à União.

5º acto

No dia 1 de Março, vem a lume uma conversa entre oficiais de alta patente do exército alemão, presumivelmente escutada pela espionagem russa ⎼ a sua veracidade não foi contestada. Os oficiais alemães discutem abertamente como destruir a ponte de Kerch entre a Rússia e a Crimeia usando mísseis Taurus. A ponte foi construída depois da anexação da Crimeia por Putin em 2014.

6º acto

Em 6 de Março, sabe-se (Público) que: “Bruxelas avança 1.500 milhões de euros para acelerar produção de armamento: Comissão apresentou a primeira Estratégia Industrial de Defesa, que passa por alargar o modelo da compra conjunta de munições a toda a fileira da defesa, para reforçar a capacidade de produção da UE”. O ponto interessante desta notícia reside em que a “política de defesa” é atributo exclusivo dos Estados membros da UE, não tendo as insti-tuições europeias qualquer competência; apesar disso, Bruxelas mete nada menos do que 1.500 milhões de euros na definição de uma “estratégia industrial de defesa”… ou seja, na transformação das economias europeias em economias de guerra.

7º acto

O presidente Biden escolhe cuidadosamente que antecessor homenagear, para ilustrar o seu desígnio, no tradicional discur-so sobre o “estado da União” (7 de Março).A escolha recai no presidente Roosevelt e no seu famoso discurso de 1941. Nesse discurso, Roosevelt advogou a entrada do exército americano na IIª Guerra Mundial.

Citando Roosevelt, Biden estrondeou que “a liberdade e a democracia estão a ser atacadas”. Biden prepara a população americana para a próxima guerra, e aumenta a pressão sobre os representantes republicanos, que, pressionados por Trump, bloqueiam uma ajuda militar suplementar de 61 mil milhões de dólares à Ucrânia (e 14.000 milhões a Israel). Biden: “A Ucrânia conseguirá parar Putin se nós (…) lhe fornecermosas armas de que ela precisa.

8º acto

No início de Abril, uma cimeira da NATO aprova o planeamento para pôr à disposição da Ucrânia 100.000 milhões de euros para comprar armamento nos próximos 5 anos. O secretário-geral, Stoltenberg (Reuter): “Temos de conseguir que a ajuda de segurança à Ucrânia seja fiável e previsível a longo prazo… não tanto ofertas de curto prazo, mas compromissos multianuais.” 50 mil milhões da UE para aguentar o Estado ucraniano,

100 mil milhões da NATO em armas para o exército ucraniano…

9º acto

Seguindo discussões em Bruxelas, na NATO e na UE, as chefias militares portugue-sas, acolitadas por comentadores às ordens, lançam o debate sobre a restauração do serviço militar obrigatório.
Suscita-se breve polémica. Alguns militares exprimem dúvidas, dada a “alta tecnicidade” da guerra moderna, que não se compadeceria com simples recrutas ignaros.
O que ninguém disse, mas todos pensaram: com técnica ou não, precisamos sempre de carne para canhão.

Os leitores terão entendido: ainda estamos longe do último acto.


  1. Note-se que, ao contrário do que fazia no início da guerra na Ucrânia, The Economist e similares deixaram de comparar os valores dos orçamentos russos com os “ocidentais” em dólares, passando a fazê-lo em dólares “corrigidos do poder de compra” ⎼  coisa bizarra para material que não é propriamente vendido na loja da esquina.
    É esse truque que permite afirmar que a despesa militar da parte europeia da NATO ⎼ menos de metade do orçamento da NATO ⎼ é “mais ou menos o mesmo que a Rússia” (em vez de um largo múltiplo do orçamento da Rússia)…
    No entanto, num arremedo de roda-pé, o próprio Economist diz que “a Rússia é muito mais pobre e menos populosa do que a Europa”. ↩︎
  2. Para termo de comparação, o alegado défice acumulado de material, a colmatar, equivale ao dobro do PIB português. ↩︎
  3. https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2024-0083_PT.html ↩︎
  4. Os eurodeputados do Bloco de Esquerda, que têm votado todas as resoluções do Parlamento Europeu de apoio à militarização da UE, ao reforço da NATO e à guerra sem quartel contra a Rússia, não compareceram a esta votação. ↩︎